domingo, 5 de maio de 2013

Quotes

“She was literally a Botticelli angel.”

 

***

 

“I was looking for some action, but all I found were cigarettes and alcohol.”

 

***

 

“Tell her that I miss our little talks.”

 

***

 

Não posso ter relacionamentos,

sentimentos,

qualquer coisa de verdade,

pois não passo de um personagem.

Um cara dançando sozinho,

No canto da balada.

 

Ela chega,

Vermelho e luzes

E Nirvana.

E dança sozinha comigo,

Que se danem os amigos.

 

E é rápido que chega

E morde, e cheira,

E tosse e cospe,

E se curva, e me curva

E se vai.

E se volta,

É com uma cerveja na mão.

E o corpo não é o certo,

E a voz dispara.

 

As luzes piscam na penumbra,

Já muito tarde.

Talvez se tivéssemos

Nos visto mais cedo.

Sem nome. Que me lembre.

Sem telefone. Nunca mais aquela voz.

Ainda bem.

 

Na varanda com uma garrafa de gelo,

Já é muito cedo,

O Sol já meio nascendo,

Mas ainda não.

As coisas quase dando certo,

Mas ainda não.

Ainda bem.

***

Não importam os méritos literários ou políticos de Hemingway, ele realmente sabia uma coisa ou duas sobre a vida.

***

Você sonha com uma ótima estória, ao longo do dia, vai esquecendo, não escreve. Quando chega a noite, tenta lembrar como era, mas só consegue lembrar que a estória que parecia boa era na verdade simbolicamente autobiográfica.

***

Só se pode ser romântico quando se é bonito, caso contrário se é apenas um idiota.


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quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Improvisadores (parte 1, provavelmente)

Todos sabiam que, caso algum dia entrassem em alguma confusão, o culpado disso seria Hector. Eles todos moravam juntos, mas nem Daniel nem Júlio conseguiriam dizer que sabiam muito bem as coisas nas quais Hector se metia quando eles não estavam por perto. Sabiam, no entanto, que essas coisas não poderiam ser boas. Isso pelo arquétipo no qual enquadravam o companheiro de quarto: Hector era largado, não se importava com nada, não levava os estudos a sério, assim como não levava nada a sério. Não eram poucas as noites nas quais ele simplesmente sumia, sem avisar nenhum dos outros dois. Das primeiras vezes foi impossível que não se preocupassem, eram todos auto-exilados de cidades pequenas tentando a vida na cidade grande. Ou melhor, tentando tentar a vida, já que estavam os três fazendo cursinho e isso dificilmente pode ser chamado de vida. Daniel era o que se preocupava mais. Tinha em si aquele espírito taurino de comodidade máxima e que procura sempre a segurança, aquele espírito que é tão comum nos pais e em outras pessoas que para eles eram velhas, mesmo quando não são taurinas. Júlio desistiu de se preocupar com Hector muito rapidamente, tinha mais o que fazer. Mas Daniel não conseguia se desprender completamente. Mesmo quando percebeu que Hector, ainda sumisse por dias, não atendesse o telefone e não avisasse qualquer tipo de coisa para eles, invariavelmente ia aparecer exausto na própria cama, como se nunca tivesse saído de lá, e tendo entrado no apartamento sem que os outros dois percebessem, Daniel não conseguiu deixar de se preocupar por completo. Depois desses sumiços Hector simplesmente se juntaria aos outros, que provavelmente estariam estudando na mesa da sala, em silêncio completo, e acenderia um cigarro, com um sorriso numa metade da boca e a outra com um traço reto dos mais blasés. Daniel deixou de preguntar o que Hector andara fazendo quando percebeu que nunca receberia uma resposta, e passou a tentar esperar que o primo – pois eram primos – viesse a contar suas aventuras de bom grado. Isso também nunca aconteceu, é claro.

Hector estava no seu segundo ano de cursinho. Tentara direito, psicologia e não fazia ideia do que tentaria agora. Não se importava, só continuava prestando o vestibular para que seus pais continuassem a sustentá-lo em São Paulo, não queria sequer pensar em voltar para sua cidade natal, e muito menos em ter de trabalhar para pagar pelos próprios hábitos. Quando Daniel não conseguira entrar no curso de engenharia que tentara no ano anterior, os pais dos dois acharam que seria uma boa ideia que fossem morar juntos. Se Hector não gostou da ideia também não disse nada contra ela. E como o apartamento ficaria mais em conta dividindo em três, Júlio acabou indo morar com eles. Também estava no segundo ano de cursinho, mas estava tentando medicina, então já estava conformado de até mesmo ter de fazer cursinho por mais algum tempo. Tecnicamente Júlio chegara ao apartamento por ser amigo de Hector, mas Daniel não conseguia ver como isso poderia ser verdade. Pareciam diametralmente diferentes. Tudo que Hector tinha de largado, Júlio tinha de dedicado, ainda que isso fosse simplesmente por culpa da necessidade na qual se encontrava. Tudo que Hector de de blasé, Júlio tinha de louco. Daniel, é claro, não se sentia bem com nenhum dos dois.

O único momento em que os três pareciam um grupo de verdade era quando cada um empunhava um instrumento musical e se colocavam a tocar. A música tem esse poder mágico de unir as pessoas muito mais que qualquer outra forma de arte. Quando estavam ali, no apartamento, Hector se sentava ao piano, que havia pertencido à avó que compartilhava com Daniel, como se estivesse interpretando um músico de honk-tonk saído direto de algum filme dos anos 40 e os outros dois pegavam cada qual um violão. Não raro improvisavam. Eram muito bons em fazer isso juntos. Outras vezes compunham; Hector era especialmente bom nisso. E ainda, mais raramente, tocavam alguma música dos Beatles, banda pela qual Júlio era tão fanático quanto qualquer menina da década de 60 trajando suas características meias três-quartos. Sobre a cama de Júlio havia uma foto do grupo tocando no Nippon Bodukan, e no criado mudo ao lado da cama, uma pequena foto de George Harrison que beijava todas as noites antes de ir dormir, como se fosse a imagem de um santo. Uma vez por mês iam em um estúdio. Lá Hector ficava com o baixo, ainda que não completamente satisfeito com isso, Júlio com a guitarra e Daniel com a bateria. Vez ou outra Hector conseguia se safar e tocar num piano, teclado, uma segunda guitarra ou alguma outra coisa que estivesse disponível. Seu talento real era no piano, improvisava muito bem nele, com uma pitada do jazz que tanto gostava. Daniel não entedia muito de jazz, mas sempre lembrava de Thelonious quando Hector tocava, por algum motivo misterioso. Daniel gostava da bateria por um fator muito simples: ali ele tinha em quem bater, podia direcionar sua raiva e seus hormônios para algum fim mais ou menos útil. Júlio sempre lembrava da bateria dos Sonics quando ouvia Daniel tocando. Mas não era só para liberar a frustração de um rapaz de dezessete anos que passava metade de seu dia preso numa sala de aula cujo ensino era direcionado para a área de exatas – e composta por ao menos 90% de outros rapazes como ele, embora talvez um pouco mais feios, em geral – que Daniel sentava no banco da bateria. Ele realmente gostava do instrumento, e gostava dele com violência. Júlio, como a fotografia de Harrison deixava bem clara, não tinha muito para onde fugir de sua guitarra. Surpreendentemente, no entanto, ao tocar ele não lembrava os outros dois companheiros de George, pelo menos não na sua fase Beatle, os solos eram muito longos, os riffs eram completamente viajados. Era fácil de perceber que ao tocar Júlio entrava numa espécie de transe. Sua guitarra, uma fender cherry red, estava completamente destruída de tão usada, quando Daniel a ouvia só conseguia pensar em anjos e na festa do céu, Hector lembrava do diabo, de Robert Johnson e Paganini. Não tinham pretensões, tocavam para se divertir (Júlio), para aliviar o stress (Daniel), ou simplesmente porque tinham de colocar aquela música para fora (Hector). Essas eram situações mágicas para todos eles. E, como tal, não eram frequentes, pareciam ser guardadas para momentos propícios. O que definia o quão propício era o momento era simplesmente o destino.

A verdade é que a maior parte do tempo Júlio e Daniel passavam estudando na mesa da sala. Hector ficava zanzando pelo apartamento, fazia comida, dormia, lia Nietzsche, fumava, deitava no chão, e se entediava até não conseguir mais aguentar e sumir por algum tempo. A maior parte das vezes simplesmente passava uma noite fora, uma noite e um dia, duas noites e o dia no meio, vez ou outra, no entanto, sumia por três dias e os outros inventavam desculpas, caso alguém da família ligasse atrás dele. Não era difícil. Mais difícil seria explicar o motivo de Hector nunca atender o telefone celular, mas por algum motivo essa questão nunca vinha à tona. Daniel pensava que o primo poderia atender nesses casos. Mas a chance disso realmente acontecer era mínima. Era já final de maio quando Hector passou quatro dias fora. Por um lado isso não era nada demais, era de se esperar que alguém que passava três dias fora muito bem pudesse passar quatro. Mas essa quebra de padrão deixou Daniel preocupado. Júlio tentou acalmá-lo. Caso algo ruim tivesse ocorrido, eles já estariam sabendo disso. Não é foi um grande consolo para Daniel, mas ele tentou se conformar que era fim de semestre, nada mais natural do que Hector estar mais estressado que o normal e decidir prolongar suas aventuras noturnas (pois Daniel certamente pensava que essas aventurar eram principalmente noturnas) do que o usual. Não foi, no entanto, esse o caso. Dessa vez, quando Hector chegou em casa, ele não foi sorrateiro como um ninja, mas sim parecia querer chamar a atenção dos dois amigos. Os olhos arregalados não combinavam com a expressão blasé que tinham se acostumado a ver no rosto dele, ainda que o cigarro estivesse ali na boca, imutável. A camisa ensanguentada, no entanto, foi o que deixou Daniel à beira do desespero; perguntou imediatamente se o primo estava machucado, se precisava de ajuda. Depois de um segundo para pensar, Hector respondeu que não, não estava machucado, mas precisava de ajuda; tinha matado alguém e agora precisava se livrar do corpo. Júlio e Daniel, como bons amigos, é claro, imediatamente responderam que sim, que ajudariam.

***

The word under her name was "wed"
And the ring on her finger was a raven
Promising me "nevermore".

I changed my clothes
And all of my passwords
And all of my habits
But I could not save myself
From the greatest of vices: You.

Too real to bear
Were the parts of you I kept,
the ones you hide and leave to die
And when I go, they go with me
The real you, it goes with me.

The light in your eyes will gaze
At all the things that could have been
But were just too real to exist

And, "nevermore", will say your lips.

***

Não sei o que fazer. Nunca soube e nunca vou saber. Se agi errado, a culpa é minha. E não, não existe como não me sentir culpado. É que a vontade de escrever alguma coisa confessional sempre aparece em alguém que tem uma vida tão vazia quanto a minha. Deve ser exatamente por isso, nada lá fora parece fazer parte da vida, então você precisa preenchê-la, nem que seja com textos idiotas, e com um número de filmes grandes demais para um dia com apenas vinte e quatro horas. É uma forma de ao mesmo tempo encontrar um sentido e uma ocupação. Eu não tenho nada na vida, por isso procuro a arte, é ela que supre as lacunas. E é por isso que procuro por ela quando preciso de algum analgésico. É como o álcool, de diversas formas. Uma delas é que o escrever é uma forma de esquecer. Quando as coisas estão ali, postas no papel, é mais fácil pensar que está tudo terminado. “Closure”, não é essa a palavra? E também é por isso que é um inferno ter uma boa memória. Como por um ponto final pode ser possível se se lembra a cada cinco minutos? E como agir então quanto te vejo? Me convenço que sou adulto e que sei lidar com tudo. E é verdade. Mas o menino que escreve lembra, e lembra com o único objetivo de esquecer. O menino que escreve não sou eu, não se preocupe. Mas isso não muda nada, no fim das contas, não é mesmo? Será que é possível mudar? Sei que aprendemos coisas, que a experiência devia nos tornar diferentes, mas não tenho tanta certeza. Cada vez mais duvido da capacidade que qualquer coisa possa ter de mudar. Não, não digo isso só porque não mudou o que sinto. Digo isso porque olho para o mundo e parece tudo triste, e parece tudo vazio, e parece que é necessário achar alguma coisa que ponha um pouco de sentido na vida. No meu caso foi a arte, foi a escrita. Mas paro para olhar e isso é tão vazio, imagino se os outros, aqueles que escolhem a política, o trabalho, a família ou mesmo o amor sentem o mesmo. A vontade de mudar, a raiva, só faz parte da imutabilidade. E como poderia alguém assim parecer interessante? É só mais um no meio de milhares tão inúteis quanto. E o menino que escreve é tão inútil quanto eu. Talvez ainda mais. Mas não acredite nele, é tudo maquiagem, é tudo drama. O menino que escreve não sabe fazer as coisas de forma que elas pareçam o que são, ele só sabe fazer com que elas pareçam dramáticas. Mas o menino tem que escrever, se o menino não escreve eu não esqueço. E se o menino escreve, bem, ainda assim eu não esqueço, mas consigo me anestesiar por um tempo. E é só tempo no fim das contas, não é?

***

You know you're my queen of hearts
And I come back and see you soon.”

***

“The dreams we have as children fade away”.


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sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Atando nós.

Todos os dias, enquanto atava a gravata e se olhava no espelho, tinha de lutar consigo mesmo para não chorar, para segurar as lágrimas. Era difícil, quase impossível, mas sempre ganhava. Era nada mais que a repetição de um ritual que tinha desde a infância. Devia ter uns dez anos quando sentira uma vontade imensa de chorar enquanto amarrava os cadarços. Naquela época, havia motivo. No entanto, lutou e segurou o choro. Não para parecer mais forte e maduro do que eram seus anos, não porque achava que não valia a pena, pois valia, e sabia disso. Não sabia o motivo.Todos os dias desde então era o mesmo. Algumas vezes a vontade vinha por um motivo inquestionável, outros, pela menor das insignificâncias. Muito frequentemente vinha por motivo algum. Mas então, quando saia de casa e encarava o mundo, sabia que nada que nele existia poderia fazê-lo chorar. Nada no mundo.

Agora era um adulto, o rosto não era mais o de um menino, na verdade, já apareciam alguns sinais de idade, mesmo não sendo ainda velho. Mas a verdade é que ficara velho naquele dia em que segurara o choro enquanto amarrava o tênis. Achava que isso significava saber lidar com os próprios sentimentos: não chorar, nunca falar “eu te amo”, para ninguém, nem para a família, para os amigos, nem para a pessoa certa. Estava errado, mas se enganava, assim como se enganara naquela manhã com os sapatos e sem as lágrimas, dizendo para si mesmo que ia ficar tudo bem. Pois não ia. Não ficou e não vai ficar. Isso é certo. Nunca gostara dos livros que não tinham finais felizes, pois era só por conta do final feliz que ele conseguia deixar aquilo ir, conseguia se lembrar que aquilo não era de verdade. A verdade é um dia de chuva e uma gravata azul. Verdade é lembrar das coisas boas sabendo que não se aproveitou o suficiente porque não se deixou levar pelo sentimento. Não se deixava levar por nada. Eram só piadas sarcásticas e raiva do mundo. Raiva que não existia. O que mais queria era dizer que amava. O que mais queria era poder chorar, e ter amigos de verdade. Era dizer como o mundo e as pessoas o fascinavam. Tudo que queria era correr o mundo e conhecer tudo, aprender e ler numa cama dividida. Tudo que queria era mandar sua rotina se foder. Mas toda a manhã amarrava de volta o sentimento, prendia a si o tédio com o mais forte dos nós. Era apatia. Não sabia porque, só sabia que queria fugir e não podia. Para fazer isso teria que chorar e tinha medo. Tinha medo de tudo que sentia. Por isso perdera a chance de dizer que amava alguém entre um beijo e outro. Por isso perdeu os sonhos que tinha aos dez anos, aos poucos, morrendo de inanição. Os que tinha agora eram faz-de-conta. Eram sonhos de adulto, e adultos não sonham. Não de verdade.

E agora sentia que era tarde demais. Sua vida virara uma repetição sem sentido. Seguindo em frente apenas para ver as marcas no rosto ficarem mais profundas, para ir aos poucos se afastando de todos que lhe significassem alguma coisa. Perdera a chance de sentir algo, perdera a chance de se envolver com tudo que poderia querer: sonhos, pessoas, atividades. Se tivesse algum amigo, lhe diria que não é tarde, que é jovem. Mas nunca se é jovem o suficiente, quando se percebe, tudo já virou merda. E talvez já fosse antes, só não se tivesse percebido. Ele nunca disse adeus. Nem antes, quando deveria ter chorado e não chorou, nem depois, quando deveria ter dito que amava e não disse. Mas se despedia de si mesmo todos os dias. Cada vez mais a gravata azul – sempre azul – lhe parecia com uma forca, mas uma que ia lhe matando aos poucos. Primeiro a imaginação, depois o afeto, por último a tristeza. Quão triste é não conseguir mais ficar triste? Antes, quando ainda achava ser possível, colocara suas esperanças em diversas coisas, no livro que ia escrever, na pessoa que amava sem dizer, e por fim até em si mesmo. Destruíra tudo sem nada fazer.

Terminava o nó e se olhava no espelho. A gravata azul, o colete preto, como o resto do terno. Os olhos vermelhos, mas secos. Oito da manhã e previsão de chuva. Café preto, duas torradas e três cigarros antes de sair. Eram todos os cigarros que fumaria durante o dia. Gostava de pensar que não tinha um vício, que estava no controle, mas estava errado, como sempre. Não comeria nem beberia mais nada até voltar para casa, para o refúgio de seus pesadelos. Saía de casa e ligava o rádio. Ouvia Roger Waters dizendo “I don’t need no arms around me, and I don’t need no drugs to calm me” e sabia que ele também estava mentindo para si mesmo. É isso tudo que as pessoas faziam. Não por vontade própria, mas porque alguma coisa fazia com que não soubessem agir diferente. Era ir além dessas mentiras, era disso que gostava, era isso que o fascinava nas pessoas. E era isso que negava a si mesmo. Sabia que todos mentiam para si mesmos, mas nunca conseguira saber se todos se sentiam tão paradoxais quanto ele. É preciso amar alguém para cometer o erro de não dizê-lo. É preciso perder uma parte importante de si para chorar. Talvez as pessoas que dizem “eu te amo” o façam por não amarem, numa tentativa de forçar esse sentimento. Talvez as pessoas que choram o façam para fingir que ainda tem o que perder de si mesmas. Mas não, não era isso, sabia. Se fosse isso, as pessoas o encantariam muito mais do que o faziam de fato, esse era um problema seu, e se os outros tinham algo em comum com ele é que todos tinham cada qual seu próprio problema. Sentia o cheiro de asfalto molhado antes de começar a chover.

Na manhã seguinte era tudo igual. A gravata, os olhos vermelhos, o café, as torradas, os cigarros. A previsão é de chuva forte no fim da tarde, céu cinza o dia todo. Para sempre. Sempre.


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sábado, 6 de outubro de 2012

Era (ou tentativa de prosa poética #28)

Era um daqueles dias em que o Sol parece estar a pino mesmo cedo da manhã, ou mesmo pouco antes de desaparecer de vez. Mas era justamente o meio do caminho. Meio dia ou algo assim. Surpreendentemente, isso não queria dizer que estava quente, era simplesmente um dia claro de primavera. O céu, quase azul demais para suportar, sem nuvens, sem esperanças; ou medo.
Era um bairro histórico. Coisa que no novo mundo quer dizer algo muito incerto. Apenas um amontoado de casas velhas, algumas das quais haviam sido vagamente importantes no passado, a arquitetura incluía de tudo, desde colunas coríntias até rococós em falsas sacadas, sem esquecer, claro, das caixinhas azuis coloniais. Nada tinha a menor utilidade, tudo muito kitsch, e por isso agradava tanto aos jovens. Tanto os que afetadamente confundiam kitsch e sofisticação quanto os que buscavam a diferença e o real vivendo na sujeira do mundo, que no fim é só uma forma diferente de kitsch. E eu era apenas um dentre esses. Não importa de qual grupo, eu não sou importante nessa história.
Era um café pequeno, espremido entre uma galeria e uma casa velha. E meu café já estava frio quando a vi.
Era linda.
Era como uma borboleta.
Era o cabelo, loiro e longo como o fim do mundo.
Era o vestido, rodado e florido, branco, leve, de verão, visivelmente fino, infelizmente opaco; que dançava enquanto ela andava, e deixava à mostra os tornozelos. E os ombros ligeiramente largos para além das alças.
Era o fato de levar na mão as sapatilhas e no rosto um sorriso adulto, mas que não deixava de ser inocente.
Era a alegria daqueles pés descalços. Impensavelmente descalços. Inesquecivelmente descalços.
Era o andar incerto e cambaleante, de quem dança, de quem é louca.
Era o olhar. Aqueles olhos que finalmente tinham encontrado.
Era poesia diante de meus olhos e de minhas lentes escuras.
Era a luz do Sol, o azul do céu e as flores.
Era o brilho dourado no ar ao redor.
Era epifania. Mas não minha.
Era viva. 

***

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sábado, 4 de fevereiro de 2012

Lost In The Supermarket

Era para ser uma coisa simples. Todo mundo vai ao supermercado, não tem nenhum desafio nisso, nenhum mistério. Não é também como se eu nunca tivesse ido em um. Não num tão grande quanto aquele, isso é verdade, mas não pensei que fosse acontecer algo como me aconteceu.

Tinham me falado daquele lugar, falavam que lá era possível encontrar tudo, qualquer coisa que quisesse comprar, e a um preço justo, todos pareciam sair de lá satisfeitos. Se é que era possível para um supermercado, o lugar estava se transformando numa espécie de point, até mesmo meus amigos mais alternativos comentavam, esperava que eles fossem até esses lugares, hoje em dia é inevitável, mas não eram o tipo de pessoas que se orgulhariam disso, alguns até teriam vergonha de ter de recorrer a uma grande cadeia de supermercados, mesmo que esporadicamente. Fiquei, portanto, curioso. E foi por essa curiosidade que decidi, num dia particularmente entediante, atravessar boa parte da cidade e ver se realmente tinham motivo para tudo isso. 

Não tinha muita coisa para comprar, não, eram simples utensílios rotineiros, que não precisaria ir até lá para comprar. De fora dava para ver que era gigantesco. Quando era mais jovem, lembro de uma discussão que tive com um amigo sobre a transferência de centro na cultura ocidental, que cada vez mais era ocupado por lojas, shoppings e afins, e como isso se refletia na arquitetura. Eu não era grande expert na área, então fazia leves divagações sobre o tema, em determinado momento comparando a importância que hoje se dava aos shoppings à que décadas e séculos atrás se dava às igrejas, nada muito complexo, coisa que eu mesmo devia ter ouvido em algum outro lugar, falado por pessoas com ainda menos base do que eu. Meu amigo, por sua vez, era arquiteto, e, portanto, falou montes de coisas que deveriam ser mais profundas e verdadeiras, mas das quais entendi muito pouco. 

Vendo aquilo era difícil não achar exagerado, era muito grande, muito monumental, parecia um shopping inteiro, por mais que houvessem me dito que era uma única loja. Era difícil até mesmo saber se eram muitas as pessoas que estavam lá, era difícil fazer uma escala comparando com o tamanho do lugar, parecia muito esparso. Muitos dos caixas sequer estavam funcionando, mas talvez por também serem muitos. Haviam carrinhos e cestas de todos os tamanhos, em várias cores. Os carrinhos aparentemente todos em boas condições, sem aquelas rodas problemáticas tão comuns. Mas era de se esperar, o lugar tinha aberto a pouco tempo.

Era inevitável, passeando por todas aquelas ilhas dos mais variados produtos - alguns dos quais com rótulos estrangeiros estranhíssimos que praticamente inviabilizavam a identificação – deixar de pensar em como o consumo se entranhara na sociedade moderna, a ponto de serem edificados monumentos como aqueles. Não estou sequer falando em análises profundas sobre tudo que aquilo significava na ordem capitalista, ou todo os valores, trabalhos e histórias que se escondiam naquelas embalagens e em suas marcas, não, por mais que não descarte essas reflexões, dificilmente vou fazê-las ao mesmo tempo que encho o meu carrinho de compras das coisas que vou precisar para o mês. A reflexão ia muito mais por esse caminho do “precisar”, das necessidades fabricadas, de onde estaríamos sem tudo aquilo, se tudo aquilo realmente significava algo para as pessoas que o compravam além de uma simples atitude mecânica sem reais fins e princípios. 

O lugar me dava um pouco de medo de inicio. Os corredores infinitos, nos quais nem sempre encontrava pessoas, os grandes banners anunciando promoções, o teto distante, a claridade que lembrava um hospital, uma sala de cirurgia. O clima e até mesmo o cheiro também não eram muito diferentes de um hospital. Mas mesmo aí estava tudo bem.

No entanto, em determinado momento, percebi que estava perdido. 

Não conseguia ver onde ficavam os caixas, e já tinha perambulado tanto pelo lugar que não conseguia refazer meus passos. Era como se, ao tentar voltar por onde viera, tudo tivesse mudado, os produtos, os banners, até mesmo as prateleiras. Era como se sempre fizesse a curva para o lado errado, era como se fosse um labirinto. A primeira reação foi rir de mim mesmo. Nunca fora uma pessoa com o melhor dos sensos de direção, e o lugar era grande, me perder lá dentro era uma coisa engraçada, no fim das contas. Continuei tentando, continuei não conseguindo.

A paciência foi acabando, então resolvi pedir direções para alguma das pessoas que encontrava pelos corredores. Não consegui evitar me sentir envergonhado ao me aproximar da primeira para perguntar onde ficava a saída, e receber acenos vagos como resposta. E não deu certo. Com a segunda pessoa, não me envergonhava apenas de não saber encontrar o caminho, mas era também uma vergonha interna por não ter entendido a primeira pessoa e precisar perguntar a uma segunda. Essa deu direções mais precisas, às quais segui à risca, sem, no entanto, gerar resultados. À terceira pessoa fiz a pergunta já com um certo desespero. O resultado foi o mesmo. 

Com o tempo ficou cada vez mais difícil encontrar pessoas, elas foram ficando cada vez mais raras, o que me deu a impressão de estar indo na direção errada, mas não desisti. Ao encontrar outra pessoa, decidi que não faria perguntas, simplesmente a seguiria. E fui assim fazendo isso através dos corredores de materiais de limpeza, uns só para sabão em pó, dois ou talvez três para detergentes. Através dos incontáveis corredores de lâmpadas, fluorescentes, fosforescentes, curtas, longas, amarelas, brancas, negras, econômicas. Talvez a pessoa que seguia (uma senhora de meia idade, com um ar de dona-de-casa inegável) tenha percebido a minha perseguição e tratado de fugir com toda sua força, pois de repente, ao virar a esquina de um corredor para outro, ela simplesmente não estava lá. Nunca voltei a vê-la, assim como não voltei a ver nenhuma das outras pessoas às quais tinha pedido informação ou mesmo aquelas com as quais simplesmente tinha cruzado. Estava sozinho no supermercado.

Tudo piorou quando as luzes se apagaram. Aparentemente o lugar não funcionava 24 horas. Todo o ambiente do lugar impedia que a escuridão fosse total, mas a penumbra num lugar daqueles já era assustadora. E assim começaram a passar meus dias: as luzes ascendiam, eu vagava, sem encontrar vivalma, as luzes apagavam à noite. Com o tempo perdi os pudores e passei a consumir coisas da loja, não poderia arriscar minha sobrevivência. Algumas vezes passava por lugares que me pareciam conhecidos, algumas vezes tinha certeza que já passara por ali, mas agora estava tudo diferente. Percebi que os produtos perecíveis estavam sempre na validade, que tudo era vez ou outra trocado, substituído por coisas novas. Passei então a ficar de tocaia, esperando alguém que viesse fazer as substituições e implorar por ajuda, sem me importar se iria parecer um louco. Mas essas pessoas nunca apareciam. Eu podia passar horas, dias esperando e elas nunca apareciam. Mas bastava virar as costas e tudo mudava. A raiva crescia de uma forma assustadora. Destruí prateleiras, derrubei produtos, tudo permanecia impassível. 

A única forma que me pareceu viável de impedir a loucura foi através da criação de personagens. Fingi que estava tudo bem, que estava fazendo compras normalmente. Retirava os itens das prateleiras para mais para a frente recolocá-los, sem me importar se estavam no lugar certo. Corria para aproveitar as promoções, não conseguia raciocinar, tudo parecia tão irreal. Não conseguia pensar em nada, talvez até conseguisse sentir minha cabeça se esvaziando de todo pensamento racional, se é que ainda conseguia sentir alguma coisa. Posso ter ficado ali por anos fazendo isso, nunca saberia. E provavelmente nunca pensaria em nada, nem mesmo na desgraça em que me encontrava se um dia não tivesse ouvido a voz que vinha de lugar nenhum. A Loja, o Todo-poderoso Supermercado, a Entidade que quebrara minha alma e minha razão fazia um anúncio. Qual foi a minha esperança desmedida a ouvir aqueles sons, primeiro dúvida, seria real? Sim, era real, o que diriam? Teriam percebido a assombração que era eu rondando os corredores? Será que me ajudariam? Não, nunca. Com frieza e imparcialidade, a Voz simplesmente pediu que os clientes fizessem o favor de não recolocar os produtos em prateleiras às quais não pertenciam, e então se calou, provavelmente para sempre. Eu ri, ri como um louco, e continuei meu caminho. 

Não saberia dizer quanto tempo depois disso, quantas centenas de vezes as luzes tinham apagado e acendido até o dia em que encontrei a escada. Era uma escada rolante, que subia, subia uma grande altura, sabe-se lá para onde. Passei horas aos seus pés, refletindo. Sabia que nunca tinha passado por ali, sabia que tinha entrado pelo mesmo andar no qual ainda vagava. Mas a dúvida era cruel, será mesmo? Será que não mudei de piso sem perceber? Será que por isso não encontrava a saída? No fim das contas, já tinha tentado tudo que podia aqui nesse andar, será que não era melhor arriscar o próximo, podia haver uma saída ali, um caminho mais fácil, um caminho que pudesse ser encontrado. Decidi então arriscar, deixei ali embaixo meu carrinho e subi a escada, ansioso para ver o que existia lá em cima. 

Faltando ainda alguns degraus pude ver. Uma seção de brinquedos, brinquedos horrendos, grandes bonecos e palhaços de plástico olhando em minha direção, olhando e rindo. Me apavorando. Tentei correr de volta, descer a escada rolante que subia, tentei com todas as minhas forças, mas nunca cheguei à metade do caminho de volta, minhas pernas me traíram. Pensei em me jogar, mas era alto demais, e estava fraco, ninguém viriam me ajudar. Não queria morrer, queria sair dali. Minhas esperanças se foram por completo. Aos pés de bonecas e palhaços, me ajoelhei e me pus a chorar.

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domingo, 23 de outubro de 2011

Inconveniências.

Meu único consolo é que, como dizem os Kings of Convenience, There’s a little bit of you in everyone.

***

I write your name a thousand times

And erase each of them.

I wish it was this simple

to deal with my feelings

to deal with you.

But the truth is -

and you know it -

I’m just no good at

dealing with anything at all.

***

Eu não vou saber o que é isso -se é ou não amor-, a não ser que você me diga.

***

SETUDEN-A4_2J. trabalhava no turno noturno da loja de conveniências. A loja era como aquelas que se encontram em alguns postos de gasolina, pequena mas com uma grande variedade de produtos: revistas, alimentos, pilhas, artigos de higiene pessoal, guarda-chuvas, e coisas do tipo. Durante o dia o lugar até que era bastante movimentado, com muitas pessoas entrando, saindo e comprando; mas já no começo da noite – assim que acabavam os pães que eram trazidos duas vezes ao dia por um padeiro associado – o número de clientes caia a olhos vistos. Era mais ou menos nessa hora que começava o horário de J. – quando ninguém mais tinha interesse na loja –. Provavelmente alguém que cobrasse um salário maior faria com que passar a madrugada abertos não valesse a pena, mas o anúncio dizia “24h” em letras chamativas.

A verdade é que existiam alguns clientes fixos que iam até a loja naquele horário, mas eram muito raras as vezes que alguém completamente desconhecido aparecia ali; quando esse tipo de coisa acontecia, J. já imaginava que o fazia por alguma emergência e quando não parecia ser esse o caso ficava um pouco desconfiado. Era uma pessoa de sorte, outras lojas da vizinhança já tinham tido problemas nos seus horários noturnos, mas nada demais havia acontecido desde que trabalhava naquela loja.

Todos os dias, quando J. chegava, os pães já haviam acabado, e costumava sair assim que chegava a leva matinal, deixando o árduo trabalho de vendê-los para os dispostos funcionários que tinham de acordar por volta das 4 da manhã exatamente para fazê-lo. Ou seja, parava de trabalhar ainda antes do Sol nascer. Quando parava para pensar, a verdade é que via o Sol poucas horas por dia, em geral pelas frestas das janelas de casa, principalmente ao entardecer, antes de sair de casa, mas também algumas vezes durante o dia alto, quando não conseguia dormir, seja pelo calor ou pela necessidade de fazer alguma coisa. Na maior parte do tempo acordado, ficava na loja, e na maior parte do tempo que estava lá, ficava sozinho, mas não se sentia solitário, tinha o lugar só para si, e tinha também a quietude do fim da noite e do começo do dia.

Por favor, não se precipite a julgá-lo como antissocial ou algo do gênero, que tipo de pessoa – de persona – seria ele se fosse assim tão raso? Mas ele merece ser observado um pouco antes que suposições sejam feitas. Vamos observar um pouco uma noite de trabalho dele para tentar entender melhor.

Ele esperou algum tempo depois de ser deixado completamente sozinho na loja, com a saída dos seus antecessores, para se sentir realmente à vontade. Abriu a mochila que sempre trazia para o trabalho e na qual tinha grande parte das coisas que precisaria para passar a noite de trabalho. Vestiu uma camisa xadrez sobre a camiseta que tecnicamente tinha que usar enquanto trabalhava, alguns CDs e um livro, Moby Dick. Recentemente tinha redescoberto os discos de David Bowie, mudando de opinião sobre vários deles, deixara de gostar de Ziggy Stardust – embora ainda gostasse dessa música, não gostava mais do disco, que antes fora um dos seus favoritos – e gostava ainda mais de Space Oddity e Hunky Dory, e um pouquinho mais de Diamond Dogs. Mesmo os últimos discos estavam sendo ouvidos de uma forma diferente. Mas a maior descoberta dos vários dias nos quais passara ouvindo a discografia do  barítono fora sem dúvida Aladdin Sane. Foi pego de surpresa pela grande presença de piano no disco, e pelos jogos de palavra, presentes até mesmo no título, mas que só percebera ao ouvir o nome do personagem ser pronunciado na música como Aladd Insane. Pressentia que iria escutar o disco várias vezes enquanto se perdia no mar com o capitão Ahab.

O primeiro a passar ali naquela noite foi o homem de terno. Ele vinha ao menos uma vez por semana, sempre em um terno, preto ou em outra cor escura genérica, sempre cansado, com algumas olheiras e traços sérios. J. algumas vezes imaginava que o homem trabalhava com uma funerária ou alguma coisa parecida, mas a verdade é que cogitava isso apenas para deixar a imaginação fluir, que aquele era um homem que tinha que lidar com pessoas no momento em que elas estão mais vulneráveis – quando estão mortas – e com as pessoas quando estão no seu momento mais racional  - quando alguém que amam morre –, mas a verdade é que por mais que imaginasse, tinha certeza que não era disso que se tratava, o rosto era sério demais, não demonstrava a sensibilidade de alguém que tem que lidar com a Morte, ao menos não dessa forma. Deveria ser simplesmente alguém que se atulhava de trabalho algumas vezes por noite dentro de um escritório, um advogado talvez, e não tinha para quem voltar quando ia para casa. O homem de terno sempre comprava alguma coisa que pudesse preparar fácil para comer quando chegasse em casa, e sempre mantinha uma distância fria para com J., por mais que se encontrassem com frequência, nunca falava nada além do essencial para a compra. J. não estava certo que aquilo era realmente frieza, por mais que desconfiasse que fosse, não deixava de lado a possibilidade de ser um agente funerário, que evitava proximidade com qualquer pessoa, para que no caso de alguma morte não se visse empurrado para a dolorosa racionalidade do luto. Escolheu algum tipo aleatório de lamen e se aproximou do caixa, só então J. deixou o livro de lado por alguns instantes (por mais que tivesse espiado por sobre o livro, não deixara de lê-lo) para atender o cliente, que manteve sua distância e saiu olhando para J. apenas quando tal era inevitável. J. ficou pensando se nas outras noites o homem comprava comida em outros lugares, para não ter que criar algum tipo de relação através da rotina.

Já estava ouvindo Aladdin Sane pela terceira vez quando a suicida apareceu. Ela parecia ter acabado de sair do Breakfast Club, aquele filme dos anos 80, vestida em uma jaqueta preta e com o cabelo, também preto cobrindo os olhos. A fração do rosto que ficava à mostra não dizia nada. Se o homem de terno era distante, essa era uma esfinge, mas a verdade é que sobre ela tinha mais certezas do que suposições. Ela sempre levava ataduras, band-aids e afins. Algumas vezes também aspirinas, remédios para dores de cabeça ou estomago, alguns analgésicos suaves. Ele tinha certeza que por baixo daquela jaqueta os braços levavam alguns cortes. Nunca dizia nada, quando queria algum remédio apontava-o na vitrine ou na receita que trazia. Não era difícil para J. entender. Ela não vinha com tanta frequência quanto o homem de terno, e isso era uma coisa que de certa forma aliviava J., por mais que fosse difícil falar em algum tipo de relação com ela, seu sentimento de humanidade fazia com que se preocupasse. Seja lá o que acontecesse, desde que fosse de escolha dela, estaria certo, não seria realmente ruim, não deveria ser algo que ele quisesse que não acontecesse, era completamente a favor que as pessoas tivessem total liberdade para fazer o que quisessem com suas vidas, até mesmo por um fim a elas, mas ainda assim uma pontinha de si esperava que tudo ficasse bem. Quando ela se aproximou do balcão, parou e pareceu olhar para o alto, para o nada, reconhecendo a música. Apesar do rosto continuar em grande parte inexpressivo, J. se arriscou a pensar que viu nas feições algum tipo de emoção, talvez até mesmo comoção. E com ela olhando para cima teve um vislumbre rápido do rosto, parecia bonita, mas não que não já o fosse com o cabelo sobre os olhos, mas os olhos são uma parte importante quando se quer entender as coisas que se passam dentro de alguém, para entender a reação de alguém a uma música, por exemplo. Quando ela saiu da loja ele continuou torcendo par que ela voltasse dali a alguns dias, sã e salva.

Passou o resto da madrugada lendo sobre o amargurado homem-do-mar e a baleia branca. Quando o dia começou a se aproximar, desligou o rádio, tirou a camisa, colocou tudo de volta na mochila e esperou os pães chegarem.


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domingo, 21 de agosto de 2011

Vain Attempts

Ela me olhou nos olhos e perguntou:

- Você já amou alguém?

E eu não consegui resistir, sorri. Não um sorriso amarelo, mas também não uma risada. Aquele tipo de sorriso quando um dos lados da boca está aberto e o outro não, um sorriso que, junto ao movimento da minha cabeça, a expressão no olhos, e o franzir das sobrancelhas, daria às pessoas que nos olhassem naquele momento que estávamos flertando. Não era uma completa mentira, mas também não era uma verdade. Ela tentava me provocar e eu certamente não deixaria de tentar provocá-la de volta, não é o tipo de chance que se tem todos os dias. Ou melhor, sim, se tem esse tipo de chance todos os dias, mas raramente elas são chances tão interessantes.

- Eu? Hahaha. Tudo que eu conheço é amor, já a muitos anos. Amor é a única coisa boa que sobrou dentro de mim depois de tanto tempo.

Ela sorriu de volta, de um jeito não menos provocante, embora de uma forma diferente. Os olhos dela tinham aquele brilho que destrói tudo que cruza pela frente. Era como se tivesse um segredo, como soubesse alguma coisa que eu não sabia, como se estivéssemos jogando uma partida de xadrez e eu tivesse feito exatamente o movimento que ela esperava que eu fizesse para me encurralar em um xeque-mate sem que eu percebesse.

- E você fala como se isso quisesse dizer alguma coisa. Como se tivesse respondido a minha pergunta.

Eu obviamente não tive reação alguma, estava muito perdido naqueles olhos – e não só nos olhos para ser completamente sincero – para me importar com uma argumentação. E na verdade eu mesmo sabia que o que havia dito não queria dizer nada, sabia muito antes de falar, mas nunca, numa situação como aquela conseguiria deixar de falar uma frase de efeito. Mas a verdade é que se tivesse pensado antes de falar, como não costumo fazer, teria falado algo bem parecido. Acreditava piamente nos meus amores, e acreditava na minha capacidade de mantê-los, não ia deixar isso de lado por um flerte, alguns sorrisos sugestivos e alguns olhares, por mais que fossem o tipo de sorriso e olhares que mais me interessavam.

Com o meu silêncio, continuamos trocando olhares, e ela continuou:

- Na verdade, se isso me responde alguma coisa, é exatamente que você nunca amou. – Foi isso que me espantou. Instantaneamente mudei de posição na cadeira, sabia que a minha expressão tinha me traído, desviei o olhar, apenas por alguns segundos perdi o contato com os olhos dela e vi o vapor que subia das xícaras. Devo ter ficado vermelho, no momento em que olhei de novo para ela a expressão não tinha mudado muito, continuava segura e orgulhosa, havia encurralado meu rei com uma afirmação que não era verdadeira, não para mim. E continuou. – Levando mais a fundo… Me atrevo a dizer que você nunca conseguiu amar ninguém, e duvido que conseguiria fazer isso hoje.

- E por que você acha uma coisa dessas? Meu coração pode se apaixonar por qualquer coisa, a qualquer momento, sem o menor controle da minha parte. Mas por que tão preocupada com isso? Quer ter certeza que eu vou me apaixonar por você? – Consegui voltar à expressão inicial, não era difícil se perder nela.

Ela riu, uma risada clara, limpa, que não poderia significar nada de ruim.

- Não, seu coração não conseguiria. E sorte a sua que não estou interessa em uma paixão, apenas sexo.

- Ah, mas a pergunta mais importante você não respondeu…

- Você gosta demais do amor, é poeta demais para já ter amado. Você já sabe muito bem das coisas que gosta, só encaixa o mundo nessas coisas e chama de amor.

- Oras, quem sou eu para saber do que preciso, e quem somos nós para saber o que é realmente o amor, ele pode muito bem ser isso que você acabou de falar que não é.

- Não tente escapar com jogos de palavras. Você pode não saber o que precisa, mas eu sei muito bem.

Foi uma noite divertida.

***

“Call in love, call in whatever you please
It's not what you wanted
It might be just what you need

[…]I don't know what it is I'm feelin'
A four letter word really gets my meaning
Nothing ever lasts
Forever” – Beady Eye.


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