sábado, 20 de novembro de 2010

Feijoada Búlgara (Ou algumas razões e dúvidas)


Alguns meses atrás, em uma conversa com uma amiga que sabe que minhas intenções literárias são prioritárias a outras no que se refere a carreira ela me disse que eu não tinha nenhum dos três vícios do escritor. Bebida, cigarro e café. Isso ficou um pouco na minha cabeça, não concordo que os vícios de escritor sejam esses – cadê o sexo e as drogas? – mas tudo bem, vamos considerar que sejam esses. Já a alguns anos um amigo, com o qual eu não falo a algum tempo na verdade, havia me desafiado a encontrar um escritor do qual eu goste que não seja, nas palavras dele, um bêbado, e nisso enquadrando esses vícios anteriores. Na verdade é bem difícil encontrar um que não bebesse, mesmo entre os clássicos, de forma alguma. Entre os mais recentes é um trabalho um tanto difícil encontrar algum que não bebesse morbidamente. E de fato eu não bebo, não muito, não com muita freqüência, não gosto de beber, do gosto da coisa em si. Esse amigo sempre usou isso como argumento para justificar por que eu nunca seria um bom escritor, nunca conseguiria fugir dos meus temas-padrão.
Então vem o cigarro. Esse é complicado.  Eu tenho plena consciência que seria hoje um fumante, se não por outro motivo, pela estética da coisa, pelo ar cool e noir que o cigarro pode dar a uma pessoa. E eu sempre gostei de filmes noir. Mas isso não aconteceu, e eu realmente não creio que vá acontecer. Não é mistério nenhum que quando tinha 11 anos meu pai morreu vitima de um câncer, causado pelo consumo excessivo de cigarro. Então prometi para mim mesmo que não ia fumar. Até agora tenho sido muito bom em manter promessas, não pretendo começar quebrando logo essa. Todos os meus amigos que poderiam me influenciar para fazer isso em um momento mais crítico – e eu tenho esses de vez em quando – sabem dessa história e decidiram me apoiar, então acho que estou bem, for the time being.
E, finalmente, o café. Na época que me classificaram fora desses vícios realmente não tomava café. Hoje todos os dias – ou noites – ele está lá, numa xicrinha. Tudo começou quando decidi parar de beber refrigerantes. Não por um motivo especial, talvez só estivesse procurando uma pequena mudança nesses dias que parecem tão esquisitos dentro de um daqueles globos com paisagens congeladas dentro, e neve. Ou talvez porque na minha cabeça já consumi refrigerante suficiente para derreter meus ossos, de fato eles não estão muito bem nos últimos tempos. Mas o ponto é que substituí o refrigerante pelo café. Quando contei isso para alguns amigos mais antigos eles não puderam deixar de comentar que não esperavam menos de mim, não posso diminuir meus vícios, apenas substituí-los. Afinal de contas, sou uma pessoa de vícios – por mais que não aqueles lá em cima – e manias, outro ponto muito curioso da minha personalidade. Fico muito chateado quando confundem minhas manias com algum tipo de organização ou método. Elas não fazem lógica, eu faço porque sinto que tenho que fazer, só isso.
E agora que o objetivo que tinha em mente quando comecei esse texto já foi completamente pelos ares, vou aproveitar para falar um pouquinho de outra coisa que me incomoda muito, a idéia que as pessoas costumam ter de ironia. Talvez a culpa seja do humor inglês, que costuma não só ser irônico como juntar a isso o sarcasmo. Quando você usa de ironia numa frase você não precisa estar querendo dizer o contrário do que de fato diz – ficou confuso? – mas apenas dizer algo diferente, no meu caso algo diferente no sentido moral, na maioria das vezes. A idéia é que quando se usa ironia não é necessária a descrença naquilo que se diz, pelo contrário, em muitos casos a ironia pode e deve ser usada para ressaltar um discurso, relacionando-o a um contexto diferente, a paradigmas diferentes, ou simplesmente para incitar no interlocutor – detesto essa palavra – um pensamento crítico. Ironia é basicamente um comentário sagaz sobre algo. Ironia é uma forma de fazer as pessoas pensarem através da destruição dos conceitos pré-estabelecidos que elas possam ter. Se alguém não quer olhar pela janela e ver os campos verdejantes lá fora a ironia chega e derruba as paredes, assim a pessoa não vai poder evitar ver, ou melhor, só não verá se for cega. E essa cegueira foi um comentário irônico.
Digo isso porque as pessoas costumam ter dificuldade para entender muitos dos comentários que faço, não que todos eles tenham sentido, a maioria não tem e gosto muito deles assim. Mas normalmente é necessário um período de convívio para que as pessoas comecem a entender, a contextualizar, talvez, e ainda assim não consideram isso ironia, a não ser quando acompanhada de sarcasmo. Mas até aí tudo isso pode ser só uma pequena ironia.
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Ele cuidava do pequenino bonsai como se cuidasse de um filho recém-nascido. De fato, desde que se separara dois anos antes e deixara de ver os filhos de verdade poucas coisas realmente recebiam seu afeto. Inicialmente pensara em um cachorro, afinal dizem que é o melhor amigo do homem, mas assim que entrou na pet shop e olhou para aquelas criaturinhas começou a pensar com qual deles as crianças gostariam de  brincar quando viessem visitá-lo, qual seria melhor para a casa pequena, para não atrapalhar os vizinhos. Então lembrou que os filhos não viriam visitar, pelo menos não nos próximos dez anos, até terem idade suficiente para uma viajem internacional sem acompanhantes. Lembrou que o casal de velhinhos do andar abaixo sequer se incomodaria em reclamar, por mais que quisessem, era muito esforço só para se entrar em uma discussão, e não se quer isso depois de uma certa idade, lembrou que o síndico no andar de cima não deixaria de perceber o animalzinho, e que não era muito dado a aceitar esse tipo de coisa no condomínio. Lembrou que ele mesmo não iria querer torturar o cão cortando suas cordas vocais mas também não teria paciência com as coisas que nenhum animal pode evitar fazer. Talvez fosse essa sua falta de paciência que tivesse o colocado na situação na qual se encontrava.
Mas quando viu o bonsai não pensou em nada, não lembrou nada, simplesmente o achou ideal. E não o bonsai de uma forma geral, mas sim aquele bonsai. No começo teve grandes dificuldades, mesmo agora não era um grande artista no que se refere ao tratamento da pequena árvore. Mas lentamente vai evoluindo, vai aperfeiçoando a planta colossal em significado e compacta em espaço. A cada delicada tesourada aparando e ajudando no crescimento se perde em pensamentos que abandona assim que acaba. O bonsai lhe ensinou não só a paciência, ensinou o valor da reflexão e do pensamento, mesmo que insondável, mesmo que inóspito. A planta infecunda colocou naquela cabeça centenas de fantasias e esperanças, expectativas que nunca se confirmariam. O homem, inocente, pensava em como estava melhorando, em como estava evoluindo com o que aquela árvore lhe ensinava. Esqueceu que tudo que tirava dela era esperança, e não sabia que as esperanças são feitas para permanecer na alma, para serem podadas antes que cheguem ao coração.
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- Bom saber que você está feliz, mas por favor tome cuidado, não entre em parafuso. – Foram as palavras que ela disse, feias como foram, e naquele momento percebi que era inevitável, que ia acontecer tudo novamente.

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