quinta-feira, 23 de junho de 2011

Escrito em papéis perdidos.

anti-retro-98902-530-352Não gosto das páginas em branco, prefiro pautadas. Pode ser culpa da minha falta de coordenação motora, mas escrever em páginas brancas me parece pretencioso. É como criar algo do nada, as pautas são meu chão, meu começo e meu limite.

O que são palavras se não a tentativa de preencher a lacuna entre dois horizontes? E o que são as pautas se não horizontes? As palavras não estão aqui apenas para preencher o espaço entre o eu-escritor e o você-leitor – se é que isso pode ser considerado um espaço –, mas sim para ocupar muitas outras lacunas, entre meus pensamentos e minhas ações, entre seus sentimentos e suas reflexões. Pelo menos é isso que elas tentam.

Quantas vidas já foram modificadas por aquilo que se colocou entre duas pautas ou pela grandiosidade daquilo que cabe em uma única linha? O Papel branco me assusta, as folhas vazias são como a morte, é o silêncio, é o nada. Tudo que surge na folha em branco é antes forma que conteúdo, símbolos profundos flutuando na superfície do nada. É demais para mim. É muito grande, muito forte, eu sou mais fraco, sou pequeno, sou poeta.

***

As palavras tem que ser fáceis. Complicar não é recomendável. Porque dificultar o entendimento? Arte é sentimento, e nenhum sentimento vem de palavras misteriosas. Não é necessário saber o que se quer falar, os dedos se movem sozinhos, a caneta dança no papel, entre as pautas.

Quando escrevo, faço isso para que você leia, e, principalmente, para que você sinta. Não precisa se sentir da mesma forma que eu, isso é impossível, mesmo que minha habilidade fosse perfeita – e sei que está longe disso – ainda não seria possível. Cada pessoa é muito íntima, cada sensação é muito própria. Mas que sinta alguma coisa, qualquer coisa; que signifique algo para você, que te ajude a entender ou a esquecer. Que faça por você uma pequena parte do que faz por mim.

***

Ela estava no ônibus quando percebeu que havia algo de errado com a sua vida. Naquele momento ainda não conseguiu saber do que se tratava, não foi uma epifania, ela não compreenderia aquilo antes que muitos dias tivessem se passado. Mas naquele momento ela soube que havia algo de errado.

Os cabelos cacheados caiam pouco acima dos ombros, o nariz pequeno se dilatava e retraía, como se estivesse nervosa. A pele, levemente morena, estava mais pálida que o normal. Ela não sabia o que havia de errado, mas sabia que não era estar de pé num ônibus que nem sequer estava insuportavelmente lotado, era algo muito mais profundo, muito mais difícil de ver, ao menos para alguém que olhasse de perto para a própria vida, como ela então fazia.

Ainda um tanto pálida e com os olhos agora brilhando, perdeu o ponto no qual deveria descer, mas não lhe fez mal, o próximo não era assim tão longe, e ela agradeceria – se conseguisse pensar nisso naquele momento – pela chance de caminhar um pouco sob a lua e as estrelas que tinham surgido no céu a pouco, no clima agradável de uma noite em maio.

Muitas coisas poderiam estar acontecendo naquelas ruas enquanto ela andava, mas em nenhuma delas ela prestou atenção. Até mesmo atravessar a rua não foi muito mais que um reflexo, não precisou pensar para fazer, e não é assim grande parte das coisas que fazemos no nosso dia-a-dia? Acabamos perdendo muitos momentos simplesmente porque não prestamos atenção, estamos pensando em outra coisa, e funcionando no piloto-automático. Isso não é uma coisa ruim, não, de forma alguma, muitas vezes é isso e apenas isso que faz alguns dias de nossas vidas suportáveis de tão tediosos, muitas vezes são nesses momentos em que pensamos nas coisas que realmente nos são importantes, muitas vezes são esses os momentos nos quais descobrimos o que realmente nos é importante, e como algumas coisas pequenas ganharam espaço em nossas mentes sem nem ao menos termos percebido até então. Mas não ela não estava pensando em nada disso.

Na verdade é difícil dizer que ela estava realmente pensando em alguma coisa. Talvez fosse mais fácil comparar aquele estado com alguma droga. Uma droga muito potente, e aparentemente sem muitos efeitos colaterais. Quem olhasse para ela enquanto atravessava a rua nunca imaginaria o que se passava naquela cabeça, e teria que conhecê-la muito bem para perceber que  estava pálida. Ela conseguia sentir o vento em seu rosto, em seu cachos, e não porque era um vento violento, mas por que ele estava lá, como sempre está e nunca percebemos. Por dentro também, era como se uma brisa suave balançasse as folhas da árvore da consciência, deixando-as temporariamente inconscientes da sua consciência.

Entrar em casa foi a mesma coisa. Abriu e fechou as portas, abriu as janelas, acendeu as luzes e tirou o cachecol. E não foi sem um pouco de surpresa que percebeu que estava em casa. Agora ela sabia que algo havia de errado, e não desistiria antes de descobrir o que era. Mas foi essa a vez na qual percebeu que estava em casa, e foi nessa vez em que finalmente estava certa.


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