domingo, 23 de outubro de 2011

Inconveniências.

Meu único consolo é que, como dizem os Kings of Convenience, There’s a little bit of you in everyone.

***

I write your name a thousand times

And erase each of them.

I wish it was this simple

to deal with my feelings

to deal with you.

But the truth is -

and you know it -

I’m just no good at

dealing with anything at all.

***

Eu não vou saber o que é isso -se é ou não amor-, a não ser que você me diga.

***

SETUDEN-A4_2J. trabalhava no turno noturno da loja de conveniências. A loja era como aquelas que se encontram em alguns postos de gasolina, pequena mas com uma grande variedade de produtos: revistas, alimentos, pilhas, artigos de higiene pessoal, guarda-chuvas, e coisas do tipo. Durante o dia o lugar até que era bastante movimentado, com muitas pessoas entrando, saindo e comprando; mas já no começo da noite – assim que acabavam os pães que eram trazidos duas vezes ao dia por um padeiro associado – o número de clientes caia a olhos vistos. Era mais ou menos nessa hora que começava o horário de J. – quando ninguém mais tinha interesse na loja –. Provavelmente alguém que cobrasse um salário maior faria com que passar a madrugada abertos não valesse a pena, mas o anúncio dizia “24h” em letras chamativas.

A verdade é que existiam alguns clientes fixos que iam até a loja naquele horário, mas eram muito raras as vezes que alguém completamente desconhecido aparecia ali; quando esse tipo de coisa acontecia, J. já imaginava que o fazia por alguma emergência e quando não parecia ser esse o caso ficava um pouco desconfiado. Era uma pessoa de sorte, outras lojas da vizinhança já tinham tido problemas nos seus horários noturnos, mas nada demais havia acontecido desde que trabalhava naquela loja.

Todos os dias, quando J. chegava, os pães já haviam acabado, e costumava sair assim que chegava a leva matinal, deixando o árduo trabalho de vendê-los para os dispostos funcionários que tinham de acordar por volta das 4 da manhã exatamente para fazê-lo. Ou seja, parava de trabalhar ainda antes do Sol nascer. Quando parava para pensar, a verdade é que via o Sol poucas horas por dia, em geral pelas frestas das janelas de casa, principalmente ao entardecer, antes de sair de casa, mas também algumas vezes durante o dia alto, quando não conseguia dormir, seja pelo calor ou pela necessidade de fazer alguma coisa. Na maior parte do tempo acordado, ficava na loja, e na maior parte do tempo que estava lá, ficava sozinho, mas não se sentia solitário, tinha o lugar só para si, e tinha também a quietude do fim da noite e do começo do dia.

Por favor, não se precipite a julgá-lo como antissocial ou algo do gênero, que tipo de pessoa – de persona – seria ele se fosse assim tão raso? Mas ele merece ser observado um pouco antes que suposições sejam feitas. Vamos observar um pouco uma noite de trabalho dele para tentar entender melhor.

Ele esperou algum tempo depois de ser deixado completamente sozinho na loja, com a saída dos seus antecessores, para se sentir realmente à vontade. Abriu a mochila que sempre trazia para o trabalho e na qual tinha grande parte das coisas que precisaria para passar a noite de trabalho. Vestiu uma camisa xadrez sobre a camiseta que tecnicamente tinha que usar enquanto trabalhava, alguns CDs e um livro, Moby Dick. Recentemente tinha redescoberto os discos de David Bowie, mudando de opinião sobre vários deles, deixara de gostar de Ziggy Stardust – embora ainda gostasse dessa música, não gostava mais do disco, que antes fora um dos seus favoritos – e gostava ainda mais de Space Oddity e Hunky Dory, e um pouquinho mais de Diamond Dogs. Mesmo os últimos discos estavam sendo ouvidos de uma forma diferente. Mas a maior descoberta dos vários dias nos quais passara ouvindo a discografia do  barítono fora sem dúvida Aladdin Sane. Foi pego de surpresa pela grande presença de piano no disco, e pelos jogos de palavra, presentes até mesmo no título, mas que só percebera ao ouvir o nome do personagem ser pronunciado na música como Aladd Insane. Pressentia que iria escutar o disco várias vezes enquanto se perdia no mar com o capitão Ahab.

O primeiro a passar ali naquela noite foi o homem de terno. Ele vinha ao menos uma vez por semana, sempre em um terno, preto ou em outra cor escura genérica, sempre cansado, com algumas olheiras e traços sérios. J. algumas vezes imaginava que o homem trabalhava com uma funerária ou alguma coisa parecida, mas a verdade é que cogitava isso apenas para deixar a imaginação fluir, que aquele era um homem que tinha que lidar com pessoas no momento em que elas estão mais vulneráveis – quando estão mortas – e com as pessoas quando estão no seu momento mais racional  - quando alguém que amam morre –, mas a verdade é que por mais que imaginasse, tinha certeza que não era disso que se tratava, o rosto era sério demais, não demonstrava a sensibilidade de alguém que tem que lidar com a Morte, ao menos não dessa forma. Deveria ser simplesmente alguém que se atulhava de trabalho algumas vezes por noite dentro de um escritório, um advogado talvez, e não tinha para quem voltar quando ia para casa. O homem de terno sempre comprava alguma coisa que pudesse preparar fácil para comer quando chegasse em casa, e sempre mantinha uma distância fria para com J., por mais que se encontrassem com frequência, nunca falava nada além do essencial para a compra. J. não estava certo que aquilo era realmente frieza, por mais que desconfiasse que fosse, não deixava de lado a possibilidade de ser um agente funerário, que evitava proximidade com qualquer pessoa, para que no caso de alguma morte não se visse empurrado para a dolorosa racionalidade do luto. Escolheu algum tipo aleatório de lamen e se aproximou do caixa, só então J. deixou o livro de lado por alguns instantes (por mais que tivesse espiado por sobre o livro, não deixara de lê-lo) para atender o cliente, que manteve sua distância e saiu olhando para J. apenas quando tal era inevitável. J. ficou pensando se nas outras noites o homem comprava comida em outros lugares, para não ter que criar algum tipo de relação através da rotina.

Já estava ouvindo Aladdin Sane pela terceira vez quando a suicida apareceu. Ela parecia ter acabado de sair do Breakfast Club, aquele filme dos anos 80, vestida em uma jaqueta preta e com o cabelo, também preto cobrindo os olhos. A fração do rosto que ficava à mostra não dizia nada. Se o homem de terno era distante, essa era uma esfinge, mas a verdade é que sobre ela tinha mais certezas do que suposições. Ela sempre levava ataduras, band-aids e afins. Algumas vezes também aspirinas, remédios para dores de cabeça ou estomago, alguns analgésicos suaves. Ele tinha certeza que por baixo daquela jaqueta os braços levavam alguns cortes. Nunca dizia nada, quando queria algum remédio apontava-o na vitrine ou na receita que trazia. Não era difícil para J. entender. Ela não vinha com tanta frequência quanto o homem de terno, e isso era uma coisa que de certa forma aliviava J., por mais que fosse difícil falar em algum tipo de relação com ela, seu sentimento de humanidade fazia com que se preocupasse. Seja lá o que acontecesse, desde que fosse de escolha dela, estaria certo, não seria realmente ruim, não deveria ser algo que ele quisesse que não acontecesse, era completamente a favor que as pessoas tivessem total liberdade para fazer o que quisessem com suas vidas, até mesmo por um fim a elas, mas ainda assim uma pontinha de si esperava que tudo ficasse bem. Quando ela se aproximou do balcão, parou e pareceu olhar para o alto, para o nada, reconhecendo a música. Apesar do rosto continuar em grande parte inexpressivo, J. se arriscou a pensar que viu nas feições algum tipo de emoção, talvez até mesmo comoção. E com ela olhando para cima teve um vislumbre rápido do rosto, parecia bonita, mas não que não já o fosse com o cabelo sobre os olhos, mas os olhos são uma parte importante quando se quer entender as coisas que se passam dentro de alguém, para entender a reação de alguém a uma música, por exemplo. Quando ela saiu da loja ele continuou torcendo par que ela voltasse dali a alguns dias, sã e salva.

Passou o resto da madrugada lendo sobre o amargurado homem-do-mar e a baleia branca. Quando o dia começou a se aproximar, desligou o rádio, tirou a camisa, colocou tudo de volta na mochila e esperou os pães chegarem.


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domingo, 21 de agosto de 2011

Vain Attempts

Ela me olhou nos olhos e perguntou:

- Você já amou alguém?

E eu não consegui resistir, sorri. Não um sorriso amarelo, mas também não uma risada. Aquele tipo de sorriso quando um dos lados da boca está aberto e o outro não, um sorriso que, junto ao movimento da minha cabeça, a expressão no olhos, e o franzir das sobrancelhas, daria às pessoas que nos olhassem naquele momento que estávamos flertando. Não era uma completa mentira, mas também não era uma verdade. Ela tentava me provocar e eu certamente não deixaria de tentar provocá-la de volta, não é o tipo de chance que se tem todos os dias. Ou melhor, sim, se tem esse tipo de chance todos os dias, mas raramente elas são chances tão interessantes.

- Eu? Hahaha. Tudo que eu conheço é amor, já a muitos anos. Amor é a única coisa boa que sobrou dentro de mim depois de tanto tempo.

Ela sorriu de volta, de um jeito não menos provocante, embora de uma forma diferente. Os olhos dela tinham aquele brilho que destrói tudo que cruza pela frente. Era como se tivesse um segredo, como soubesse alguma coisa que eu não sabia, como se estivéssemos jogando uma partida de xadrez e eu tivesse feito exatamente o movimento que ela esperava que eu fizesse para me encurralar em um xeque-mate sem que eu percebesse.

- E você fala como se isso quisesse dizer alguma coisa. Como se tivesse respondido a minha pergunta.

Eu obviamente não tive reação alguma, estava muito perdido naqueles olhos – e não só nos olhos para ser completamente sincero – para me importar com uma argumentação. E na verdade eu mesmo sabia que o que havia dito não queria dizer nada, sabia muito antes de falar, mas nunca, numa situação como aquela conseguiria deixar de falar uma frase de efeito. Mas a verdade é que se tivesse pensado antes de falar, como não costumo fazer, teria falado algo bem parecido. Acreditava piamente nos meus amores, e acreditava na minha capacidade de mantê-los, não ia deixar isso de lado por um flerte, alguns sorrisos sugestivos e alguns olhares, por mais que fossem o tipo de sorriso e olhares que mais me interessavam.

Com o meu silêncio, continuamos trocando olhares, e ela continuou:

- Na verdade, se isso me responde alguma coisa, é exatamente que você nunca amou. – Foi isso que me espantou. Instantaneamente mudei de posição na cadeira, sabia que a minha expressão tinha me traído, desviei o olhar, apenas por alguns segundos perdi o contato com os olhos dela e vi o vapor que subia das xícaras. Devo ter ficado vermelho, no momento em que olhei de novo para ela a expressão não tinha mudado muito, continuava segura e orgulhosa, havia encurralado meu rei com uma afirmação que não era verdadeira, não para mim. E continuou. – Levando mais a fundo… Me atrevo a dizer que você nunca conseguiu amar ninguém, e duvido que conseguiria fazer isso hoje.

- E por que você acha uma coisa dessas? Meu coração pode se apaixonar por qualquer coisa, a qualquer momento, sem o menor controle da minha parte. Mas por que tão preocupada com isso? Quer ter certeza que eu vou me apaixonar por você? – Consegui voltar à expressão inicial, não era difícil se perder nela.

Ela riu, uma risada clara, limpa, que não poderia significar nada de ruim.

- Não, seu coração não conseguiria. E sorte a sua que não estou interessa em uma paixão, apenas sexo.

- Ah, mas a pergunta mais importante você não respondeu…

- Você gosta demais do amor, é poeta demais para já ter amado. Você já sabe muito bem das coisas que gosta, só encaixa o mundo nessas coisas e chama de amor.

- Oras, quem sou eu para saber do que preciso, e quem somos nós para saber o que é realmente o amor, ele pode muito bem ser isso que você acabou de falar que não é.

- Não tente escapar com jogos de palavras. Você pode não saber o que precisa, mas eu sei muito bem.

Foi uma noite divertida.

***

“Call in love, call in whatever you please
It's not what you wanted
It might be just what you need

[…]I don't know what it is I'm feelin'
A four letter word really gets my meaning
Nothing ever lasts
Forever” – Beady Eye.


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sábado, 20 de agosto de 2011

Try Again Tomorrow.

Você tenta mudar, mas não é fácil. Não dá para mudar aquilo que você é do dia para a noite, ou da noite para o dia. Você pode tomar decisões, você pode até mesmo tentar mudar algumas coisas fundamentais, pode deixar de se importar com as coisas que fingia se importar antes, pode simplesmente não olhar na cara daquelas pessoas que você não consegue mais suportar. Mas esse tipo de coisa não é suficiente, não vai te livrar de coisa alguma. Na verdade, nada vai te livrar do desconforto para o qual a vida vai sempre te empurrar. Mas as perspectivas para além da vida só são melhores se você for muito otimista. E, convenhamos, você não é, não precisa mentir para mim.

thats-life-z4zpsm3pb-85207-430-602A única chance que você pode ter de fazer isso com sucesso – e mesmo assim apenas por algum tempo – é deixando tudo para trás. Mas isso é fácil de imaginar, você já devia ter pensado nisso mesmo antes que eu falasse. Mas também é impossível olhar ao seu redor e não querer continuar se apegando a ao menos alguma coisa; pode ser um amigo, um lugar, uma mania. Ninguém realmente quer se livrar de tudo, mas algumas vezes parece ser mais vantajoso deixar de lado algumas coisas boas quando as ruins são consideravelmente mais significativas. Mas isso não é fácil, a perspectiva de deixar de lado todas as pequenas coisas que ainda te dão prazer para substituí-las por incertezas não é das melhores. Você sabe que a tentação para voltar atrás vai ser grande, e que a única forma que existe de não ter como voltar atrás é muito definitiva, e nem um pouco segura. Então por que não optar pelo caminho mais simples e ir mudando aos poucos, não é mesmo? Só que essas mudanças lentas nunca são mudanças de verdade; quando você começar a ignorar as coisas que merecem ser ignoradas, quando começar a fazer as coisas que sempre quis fazer, vai ter que se preocupar em encaixar o horário da sua vida anterior, vai tentar ser educado quando perguntarem o por que você está tão diferente, por que não anda mais com algumas pessoas, por que sempre que tem tempo livre se afunda num livro qualquer sem a menor pausa para jogar conversa fora. E você não vai dizer que é porque despreza as pessoas ao seu redor, que as conversas que tinha com elas não te dizem nada e que preferia não estar ali, mas que não largou aquilo por um pequeno detalhe que não importa o quão bem você consiga explicar, ninguém nunca vai conseguir entender.

Mas, é claro, existe a possibilidade de você ser um verdadeiro espirito livre e deixar completamente de lado essas malditas convenções sociais. Isso vai fazer com que se sinta melhor, funciona para mim. Mas não importa. A sensação de vazio vai voltar; você vai voltar a perceber que nada daquilo tem significado para você, exceto um ou outro pequeno detalhe. E você vai tentar de novo, e se enganar de novo. Mas essa é a vida, as pessoas não são peças de um quebra-cabeças, as coisas não vão melhorar em algum momento, não vão surgir significados, paixões novas não vão curar as feridas antigas, aquelas três coisinhas que são tudo para você não vão te salvar. Ignorância e inocência vão te proteger, mas não vão mudar o mundo, e, depois de perdidas nunca podem ser recuperadas.

Viver deve ser aprender lidar, sem nunca conseguir, sem nunca se resignar, pois resignação é morte, e a morte não é nada se não a continuidade eterna daquilo do que por uma vida inteira você tentou fugir. E morrendo você não pode dizer nem mesmo que foi teimoso o suficiente para continuar tentando aprender até conseguir.


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sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Necessidade desnecessária (Ou I Want You)

O Corvo do Poe olhou para mim e disse: “Nevermore”.
***35771-1c62df-530-668
É difícil argumentar. É difícil tentar explicar. Mesmo uma pessoa que vê significado em tudo vem, olha e vê que não existe nada, é vazio. Não existem motivos, apenas desculpas para suprir as lacunas que, no fundo, não podem sequer ser realmente sentidas, pois não estão lá. Tento sem sucesso me convencer que é só um engano, que estou errado, que não tem como ou porque. O buraco no chão continua apenas meio preenchido, não importando quanta terra se jogue em cima do cadáver, chegando ao ponto de nem sequer se ter certeza se ainda existe alguma coisa sob aquelas pás de terra, se existe alguma coisa no fundo, alguma coisa ainda que morta, ou se tudo não passa de desculpas criadas por uma mente que não consegue encontrar nada que realmente sirva como seu lugar de descanso, como um remédio para as inquietações que sempre teve, mas não quer ter por outra eternidade. Por isso se utiliza de um placebo para os espíritos inquietos, e quando percebe o que está fazendo, deixa com que o buraco que tenta tapar simplesmente cresça e fique mais fundo. Falta a coragem para pular na tumba e se sujar de lama, procurando algo que pode muito bem não estar lá. Não, a coragem não falta, ela simplesmente não existe, como tudo o mais, não existe nem mesmo a fraqueza. E quando percebo isso me desespero. Não existe nada que possa fazer, não existe nada, não existe a mínima chance de criar alguma forma de sair dessa situação, pois não existem lugares para onde ir, e mesmo as ideias não podem ser moldadas para fornecer algum conforto. O desespero faz perceber que também não existe ideia nenhuma, que tudo aquilo no que acredito – aquela pá, aquela terra, e a possibilidade de existir algo abaixo dela – tudo não passa de uma ficção criada para que não me sinta assim o tempo todo. Se as lágrimas ainda existissem dentro de mim, elas viriam, mas nem isso. Tento me convencer que não preciso mais dessas ficções, que não tenho mais utilidade para essas máscaras, que não tenho motivos para não me conformar com a minha existência inútil, sem sentido, praticamente uma não existência.
Tento me convencer que não preciso de desculpas, de como ou porquê, mas não consigo, me perco e me deixo, mas não consigo fingir que sou alguma coisa, fingir que não preciso dessas mentiras para me sentir como humano.
Tento me convencer – mas não consigo – de que não preciso de você.
***
“I couldn't make a sentence,
I couldn't even say what I meant to say.
That I want you;
it doesn't hurt to say I want you.
I need you;
I never thought I'd say I need you.
I'll keep you,
Oh yes I'll keep you and I'll throw myself away.
And I'll break you;
because I lose myself inside you.
I'll make you fit in the space that I provide you.
I'll take you,
Oh yes I'll take you just to push you far away, away, away.”
- Pulp, I Want You.
***

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quinta-feira, 23 de junho de 2011

Escrito em papéis perdidos.

anti-retro-98902-530-352Não gosto das páginas em branco, prefiro pautadas. Pode ser culpa da minha falta de coordenação motora, mas escrever em páginas brancas me parece pretencioso. É como criar algo do nada, as pautas são meu chão, meu começo e meu limite.

O que são palavras se não a tentativa de preencher a lacuna entre dois horizontes? E o que são as pautas se não horizontes? As palavras não estão aqui apenas para preencher o espaço entre o eu-escritor e o você-leitor – se é que isso pode ser considerado um espaço –, mas sim para ocupar muitas outras lacunas, entre meus pensamentos e minhas ações, entre seus sentimentos e suas reflexões. Pelo menos é isso que elas tentam.

Quantas vidas já foram modificadas por aquilo que se colocou entre duas pautas ou pela grandiosidade daquilo que cabe em uma única linha? O Papel branco me assusta, as folhas vazias são como a morte, é o silêncio, é o nada. Tudo que surge na folha em branco é antes forma que conteúdo, símbolos profundos flutuando na superfície do nada. É demais para mim. É muito grande, muito forte, eu sou mais fraco, sou pequeno, sou poeta.

***

As palavras tem que ser fáceis. Complicar não é recomendável. Porque dificultar o entendimento? Arte é sentimento, e nenhum sentimento vem de palavras misteriosas. Não é necessário saber o que se quer falar, os dedos se movem sozinhos, a caneta dança no papel, entre as pautas.

Quando escrevo, faço isso para que você leia, e, principalmente, para que você sinta. Não precisa se sentir da mesma forma que eu, isso é impossível, mesmo que minha habilidade fosse perfeita – e sei que está longe disso – ainda não seria possível. Cada pessoa é muito íntima, cada sensação é muito própria. Mas que sinta alguma coisa, qualquer coisa; que signifique algo para você, que te ajude a entender ou a esquecer. Que faça por você uma pequena parte do que faz por mim.

***

Ela estava no ônibus quando percebeu que havia algo de errado com a sua vida. Naquele momento ainda não conseguiu saber do que se tratava, não foi uma epifania, ela não compreenderia aquilo antes que muitos dias tivessem se passado. Mas naquele momento ela soube que havia algo de errado.

Os cabelos cacheados caiam pouco acima dos ombros, o nariz pequeno se dilatava e retraía, como se estivesse nervosa. A pele, levemente morena, estava mais pálida que o normal. Ela não sabia o que havia de errado, mas sabia que não era estar de pé num ônibus que nem sequer estava insuportavelmente lotado, era algo muito mais profundo, muito mais difícil de ver, ao menos para alguém que olhasse de perto para a própria vida, como ela então fazia.

Ainda um tanto pálida e com os olhos agora brilhando, perdeu o ponto no qual deveria descer, mas não lhe fez mal, o próximo não era assim tão longe, e ela agradeceria – se conseguisse pensar nisso naquele momento – pela chance de caminhar um pouco sob a lua e as estrelas que tinham surgido no céu a pouco, no clima agradável de uma noite em maio.

Muitas coisas poderiam estar acontecendo naquelas ruas enquanto ela andava, mas em nenhuma delas ela prestou atenção. Até mesmo atravessar a rua não foi muito mais que um reflexo, não precisou pensar para fazer, e não é assim grande parte das coisas que fazemos no nosso dia-a-dia? Acabamos perdendo muitos momentos simplesmente porque não prestamos atenção, estamos pensando em outra coisa, e funcionando no piloto-automático. Isso não é uma coisa ruim, não, de forma alguma, muitas vezes é isso e apenas isso que faz alguns dias de nossas vidas suportáveis de tão tediosos, muitas vezes são nesses momentos em que pensamos nas coisas que realmente nos são importantes, muitas vezes são esses os momentos nos quais descobrimos o que realmente nos é importante, e como algumas coisas pequenas ganharam espaço em nossas mentes sem nem ao menos termos percebido até então. Mas não ela não estava pensando em nada disso.

Na verdade é difícil dizer que ela estava realmente pensando em alguma coisa. Talvez fosse mais fácil comparar aquele estado com alguma droga. Uma droga muito potente, e aparentemente sem muitos efeitos colaterais. Quem olhasse para ela enquanto atravessava a rua nunca imaginaria o que se passava naquela cabeça, e teria que conhecê-la muito bem para perceber que  estava pálida. Ela conseguia sentir o vento em seu rosto, em seu cachos, e não porque era um vento violento, mas por que ele estava lá, como sempre está e nunca percebemos. Por dentro também, era como se uma brisa suave balançasse as folhas da árvore da consciência, deixando-as temporariamente inconscientes da sua consciência.

Entrar em casa foi a mesma coisa. Abriu e fechou as portas, abriu as janelas, acendeu as luzes e tirou o cachecol. E não foi sem um pouco de surpresa que percebeu que estava em casa. Agora ela sabia que algo havia de errado, e não desistiria antes de descobrir o que era. Mas foi essa a vez na qual percebeu que estava em casa, e foi nessa vez em que finalmente estava certa.


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domingo, 3 de abril de 2011

Pulp Literature #4

112Essa noite sonhei com ela. Não posso dizer que não foi um sonho estranho, porque sem dúvida foi. Ou melhor, talvez não tenha sido de todo estranho, simplesmente não estou acostumado a sonhos desse tipo, não estou acostumado a sonhos que façam tanto sentido ou que me digam alguma coisa de forma tão clara. A maior parte do sonho foi uma simples conversa sobre trivialidades, amenidades. Não vou saber dizer o que foi dito, ou qual foram os temas abordados, foi um sonhos, as coisas não funcionam desse jeito, não lembramos de todos os detalhes horas depois de estarmos acordados. Normalmente deixo ao lado da cama um pequeno caderno de anotações, para escrever aquilo que se passou em minha cabeça durante a noite, muitas de minhas estórias surgem dessa forma, mas normalmente são estórias das quais não gosto muito, são alta-fantasia ou simplesmente apresentam lacunas ou falhas enormes, que eu obviamente não conseguia identificar enquanto estava dormindo, Quase todas então são alguns rabiscos, coisas que nunca vão ver a luz do dia. Mas essa é uma situação diferente.
Não vi necessidade de escrever os acontecimentos do meu sonho. Não eram de grande importância para uma estória. Pelo contrário, eram muito pessoais. Agora não me lembro sobre o que conversamos no sonho. Mas ainda assim tenho uma vaga ideia. Mas, como disse, não faz diferença, não é sobre isso que quero falar. Quero falar que por mais que não lembre sobre o que estávamos conversando, lembro claramente que estava feliz. E me permito à liberdade de pensar que ela também estava, afinal era um sonho meu, e as imagens que conservo em minha mente não me desmentem. É impressionante como algumas imagens de sonhos nunca saem de nossas cabeças. Mas agora que penso nisso, talvez não sejam realmente coisas tiradas de sonhos, mas sim imagens reais das quais não consigo dissociar a sensação onírica – detesto essa palavra, mas não consegui pensar em nada mais apropriado enquanto meus dedos correm pelos tipos da máquina de datilografar.
Mas o que realmente me fez pensar foi o que veio depois disso. Eu não sou o tipo de pessoa que costuma ter sonhos eróticos, veja bem. Não sei dizer exatamente o porquê disso, mas o fato é que posso contar nos dedos de minhas mãos a quantidade de vezes que já sonhei com esse tipo de coisa. Mas o fato é que que o que se seguiu provavelmente pode ser descrito como um sonho erótico. Não vou descrever os mínimos detalhes, isso não é um texto sensacionalista e se o fizesse estaria inventando tudo, pois não lembro dos detalhes, e meu objetivo não podia se mais incompatível com o desenrolar do ato sexual. E ao escrever isso me surpreendo, pois não consigo realmente imaginar esse tipo de palavras saindo da minha boca na vida real, todo esse pseudomoralismo realmente não tem muito a ver comigo. Mas a máquina não rejeita nada, e nela não corro o rico de arrancar a língua com meus próprios dentes simplesmente por ter falado algo que de forma alguma é compatível com o meu comportamento habitual. Afinal escrever não é nada além de mentir pra o papel, e é ele por sua vez que mente para os leitores, não o escritor.
Mas se deixo de lado essa oportunidade que não muitas vezes aparece de fazer comentários lascivos é porque o que vou dizer agora, neste parágrafo teve sobre mim um efeito que não consigo até agora entender completamente. Ao sonhar eu sabia que a pessoa com quem fazia amor não era ela. Era completamente diferente: a cor de seus cabelos, olhos e pele, suas formas, suas proporções, desde seus trejeitos mais suaves até mesmo as diferenças mais gritantes. Não era ela. Mas ao mesmo tempo tinha de ser. Mesmo no sonho me parecia inconcebível que não fosse, mais até do que pareceria se estivesse acordado, sem sombra de dúvida. Não era ela, mas eu não conseguia aceitar que não fosse, então, de fato, era, mesmo não sendo. Não sou um grande intérprete de sonhos, eu reconheço que eles querem me dizer alguma coisa, mas dificilmente algo diferente do que eu quero dizer a mim mesmo. A ideia de dormir com ela era tão inconcebível, tão longe da realidade, que mesmo inconscientemente meu cérebro parece indisposto a aceitar.
***
Ele estava sentado na velha cadeira de balanço vendo o por do sol. Estava em frente a uma daquelas casas de madeira que só podem ser encontradas naquela região. Sempre achara aquilo exótico, de onde viera as casas podiam ser feitas de muitas coisas, mas madeira certamente não era uma delas, exceto talvez por alguns detalhes. Mas aquilo fora muitos anos atrás. Agora estava acostumado a sentar ali, na frente daquela casa, na velha cadeira de balanço algumas horas antes do por-do-sol, o cachorro, velho e cego caído de um dos lados, se aproveitando dos raios de sol até o último, e depois indo para dentro da casa procurar um lugar para se proteger do frio que costumava chegar à noite e fazer doer os seus ossos.
De certa forma aquilo servia também para o homem. Todos os dias sentava-se ali e lia a bíblia que a muitos anos atrás fora de seu pai. Não era um homem religioso, mas já tinha lido várias vezes todos os outros livros que tinha em casa. E o velho livro aguçava a sua imaginação. Quando se via naquela situação lembrava do pai. Eram muito parecidos, agora ele conseguia ver isso. Ele nunca quisera ser parecido com o pai, por mais que tivessem um relacionamento bom. E as vezes se sentia feliz que não tinha nenhum filho para se sentir como ele agora se sentia dentro de alguns anos.
Nos cabos telefônicos algumas andorinhas observavam o por-do-sol junto do homem. Era uma visão bonita, aqueles pássaros. E era um anoitecer bonito, mais bonito que os que costumava observar depois de colocar a bíblia sobre os joelhos e começar a pensar em como era parecido  com o pai. Talvez fosse mais bonito por causa das andorinhas. Elas não cantavam como alguns outros pássaros, mas ainda assim era uma coisa bonita de se ver: aquele Sol enorme e alaranjado sumindo aos poucos, o jogo de sombras com os cabos telefônicos, com as andorinhas, com o próprio homem sentado na sua cadeira de balanço. Só o cachorro não via isso. Olhos fechados, simplesmente sentia os raios de sol no seu pelo, e o medo do frio que vem com a noite.
Morreu sem muito alarde. O Sol se pôs, as andorinhas voaram, não se sabe para onde, não existiam mais sombras, apenas a noite escura e fria. Nunca mais ia ficar a tarde ali na frente da velha casa. Dessa vez o Sol se pôs de verdade.
O homem se levantou da cadeira como se já soubesse que o cachorro tinha morrido, ergueu ele nos braços e o levou para dentro de casa, logo ele ia estar em um lugar quente, onde seus ossos não iam mais doer por causa do frio.

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domingo, 27 de fevereiro de 2011

Pulp Literature #3

“Build me up buttercup, don’t break my heart”

- The Foundations

 

A realidade existe simplesmente para servir de inspiração à arte.

***

Anos atrás eu costumava olhar para as duas e não conseguia deixar de pensar que as coisas estavam finalmente certas. Nunca fora fácil, definitivamente não acredito que qualquer pessoa diria que para chegar até aquele ponto minha vida não havia passado por suas eventualidades. Duvido muito também que alguém que me visse então discordasse que tudo que me tinha ocorrido de mal tinha valido a pena. É o sonho de muitos, não duvido. Mas também não duvido da infinita capacidade humana de se sentir insatisfeito, de não conseguir ser feliz. Ou será que a felicidade é apenas o momento? Não, não é, o momento é alegria, é apenas a esperança de felicidade, e esperança é uma sensação quase tão gratificante quanto felicidade. Pelo menos assim imagino, já que hoje sei que nunca fui feliz, apenas tive esperança de sê-lo. Isso é basicamente o que acontece com todas as pessoas quando elas pensam que são felizes.

Mas o fato é que quando via as duas juntas, a mãe brincando com a filha, acreditava que aquilo era felicidade, que queria que aquilo durasse para sempre. Mas o momento acabou. E isso foi a anos atrás. Não sou mais jovem. Não como era quando minha filha nasceu. Não como era quando conheci a mãe dela. Não como achei que continuaria sendo para sempre. As pequenas coisas com o tempo vão destruindo tudo aquilo que achava que tinha. Um belo dia olhei no espelho e vi que parecia mais com meu pai do que algum dia gostaria de parecer, fui para o trabalho e percebi que as conversas mais divertidas, nas quais os mais jovens se divertiam aconteciam sempre quando eu não estava lá, percebi que minha filha já não tinha mais um sorriso inocente como quando era um bebê, muito pelo contrário, tinha quase a mesma idade que a mãe dela tinha quando a conheci, e isso me deixou com medo de que ela conhecesse um homem imprestável como eu era na época. Ela era exatamente igual à mãe quando jovem, mas certamente não acreditaria nisso, não importa quem falasse ou quantas fotos antigas olhasse, era inconcebível para ela que em alguns anos fosse ficar no mesmo estado de sua mãe. Isso porque a mãe certamente não tinha mais muitas coisas pelas quais o jovem que fui se apaixonou, mas isso é compreensível, eu definitivamente mudara ainda mais. Já a algum tempo estávamos tentando ter mais um filho, ou melhor, ela queria mais um filho, para mim era simplesmente indiferente, ela queria se sentir como se sentira quando nossa filha nascera, eu naquele dia perdi todas as esperanças que ainda poderia ter de que isso algum dia pudesse acontecer. Naquela noite não tentamos.

Na manhã seguinte a idéia de olhar para ela ao acordar era repulsiva. Não porque à achasse feia. Por mais que isso pudesse ser verdade, eu a amara – e realmente a amara – por tanto tempo que não conseguia concebê-la como sendo feia, mas não podia suportar a manifestação de todo o tempo que passamos juntos no rosto dela.

Muitas pessoas durante os anos me disseram que queriam uma vida como a minha, uma família bonita como a minha. Essas pessoas acham que ter esse tipo de coisa faria com que elas fossem mais feliz do que são com aquelas que tem. Essas pessoas acham que o mundo é injusto porque algumas pessoas tem a possibilidade de serem felizes – e elas me incluem nesse grupo – e outras não tem – e elas sempre incluem a si mesmas nesse – mas elas estão erradas. O mundo é injusto, disso não tenho dúvidas, mas não pelos motivos que elas querem ver. O mundo é injusto porque todas as pessoas, não importa quem elas sejam, o que elas tenham ou o que elas façam, todas as pessoas são essencialmente insatisfeitas. Mas o mundo é tão justo quanto é injusto, pois todos, sem exceção, tem o direito àqueles momentos – que por vezes duram mais do que simples momentos – nos quais acham que são felizes. Até que finalmente esse momento passa e não existe nenhum motivo para pensar que algum dia ele poderá voltar.

Mas então, em uma noite qualquer, o mundo te faz voltar para casa depois de um dia de trabalho extenuante, e você vê sua filha saindo de casa, no meio da noite, sem avisar aos pais com um cara com uma guitarra nas costas, um cara que de certa forma te faz lembrar de como você era muito antes dele nascer. Então eu entro em casa, jogo o paletó no chão, afrouxo a gravata e abro alguns botões da camisa, pego a velha máquina de escrever e começo a bater nos tipos até a mulher acordar e me abraçar por trás. Naquele momento você imagina ela não como é hoje, mas como era anos atrás, e sem nem mesmo perceber aquilo que os são chamariam da realidade, leva ela para a cama e percebe que os olhos são os mesmos. E percebe que aqueles momentos podem voltar, percebe que ainda consegue ter esperança, mesmo sabendo que ela é vã, e mesmo sabendo que aquilo é só um momento.
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quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Pulp Literature #2

Acordei no chão, completamente nu. Já havia me acostumado a dores nas costas, meus hábitos não eram dos mais sadios, causavam torcicolo com freqüência. Uma grande mancha roxa estava no meu braço direito, perto do ombro. Um copo caíra no chão e se quebrara, diversos cacos de vidro se espalharam, alguns me cortaram, mas nada muito profundo, apenas algumas gotas de sangue no piso branco da cozinha. A cabeça também dói, mas não foi uma pancada. A toalha, também branca e também com algumas gotas de sangue em si está estendida. Ninguém deve ter me ouvido cair, e se ouviram sem dúvida pensaram que era outra coisa qualquer. Agora já começava a escurecer. Por sorte não estava com os óculos. Se bem que quase nunca estava com eles. Mas fui até o meu quanto e os coloquei, para poder pegar todos os cacos de vidro.

Depois de catados os cacos me sentei numa das pequenas cadeiras metálicas. Os últimos dias haviam sido tão estranhos. Não completamente desagradáveis, mas ainda assim estranhos. Aquela queda provavelmente queria dizer que eu não tinha vocação para Buda. Fui para a cama devagar, ainda um pouco tonto. Nem percebi quando adormeci. Quando acordei já era noite, e estava tudo um tanto silencioso, mas por ali as coisas sempre eram silenciosas, ou será que as pessoas ficam tão habituadas com os sons da cidade que depois de um tempo simplesmente não conseguem mais reconhecer o que é silêncio de verdade? Havia escolhido aquela casa exatamente por que era mais silenciosa que a minha anterior, e menor, alguém como eu não tem necessidade de casas muito grandes, isso quando precisamos de uma casa fixa. Não me importei em ver a hora. simplesmente vesti uma roupa qualquer e saí. Poderiam ser nove da noite ou três da manhã, mas não fazia tanta diferença. Ali perto havia uma pequena loja 24hrs. A loja estava vazia, apenas a atendente lia uma revista televisiva atrás do balcão. Parecia cansada, mas todas as pessoas que trabalham me parecem cansadas, ou melhor, todas as pessoas me parecem cansadas quando olho para elas, até eu mesmo. Por isso não tenho espelhos em casa. Uma coisa a menos para ser quebrada acidentalmente. Comprei vário tipos de comida de fácil preparo, por mais que não goste delas. Também alguns copos descartáveis.

A moça no balcão sorriu para mim. Tempos atrás teria visto aquilo com outros olhos, agora sabia que aquilo não queria dizer nada, só um ato um tanto mecânico. Era uma boa atendente. Mesmo sem espelhos em casa sabia que minha aparência devia estar extremamente maltratada, especialmente se alguns cacos de vidros tivessem atingido meu rosto.

Ao chegar em casa preparei alguma coisa, não sei realmente o que, não estava pensando nisso, e comi. Provavelmente isso ia me impedir de cair pelos cantos, ao menos nos próximos tempos. É estranho como esse senso de sobrevivência funciona. É como se fome, sede e atração funcionassem como um piloto automático, só não dão resultados quando são impedidos de funcionar, ou desligados, permanentemente. Voltei para a cama. e peguei a carta que estava ali no chão ao lado dela. Algumas pessoas realmente desligam o programa.


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sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Mientras comprabas cigarrillos

Tentou se lembrar de quando havia começado a comprar livros para sua estante e não para si. Tentou se lembrar da cor da estante-seis-prestações-sem-juros. Seria Matias o nome do porteiro do seu prédio? Ou talvez Matias fosse o homem ocupando dois terços da sua cama e fração nenhuma da sua vida...
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Desligou o despertador, deu-lhe o pagamento a Matias ou Mateus ou José, vestiu a cara que melhor combinava com os sapatos e saiu sem cumprimentar Lúcia, a porteira.

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sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Pulp Literature #1

toilers_of_the_sea_02 Palavras são tudo. Tudo aquilo que existe e que não existe, tudo aquilo que cria e é criado, destrói ou é destruído. As palavras são tudo,  e quando digo palavras não estou querendo dizer o som delas sendo faladas ou a tinta delas escritas, mas elas em si. Existe um teoria de que se fossemos dividindo todas as coisas em suas partículas fundamentais, reduzindo os átomos a elétrons, prótons e nêutrons, e esses em partículas sub-atômicas, como quarks, chegaríamos num ponto em que descobriríamos que toda a matéria – e também a energia – é constituída simplesmente de informação. E é isso que as palavras são, elas são a informação em sua forma mais misteriosa e perfeita. Existem também aqueles que tendem a relegar aos números uma importância maior, os pitagóricos já diziam que todo o universo pode ser entendido por números. Talvez eles estejam certos quando dizem que os números explicam, mas são as palavras que criam. E é exatamente isso que elas fazem, as palavras são invencíveis e indestrutíveis, elas são a força criadora, mesmo quando agem através da destruição. Não se pode matar uma palavra, elas podem ser esquecidas, podem ceder lugar a palavras novas, podem até mesmo não significar nada – coisa que facilmente deixaria qualquer número, mesmo o mais tímido zero, indignado – mas são as palavras que carregam em si o poder de alimentar esperanças e quebrar corações. 

***

Ele ainda não tinha contado para a mulher, mas ia morrer. O médico não lhe dera falsas esperanças: “Se formos muito otimistas, seis meses, mas o mais provável é que não passa da metade disso”. Na verdade isso não o surpreendera, as últimas semanas haviam sido de dor excruciante, com dezenas de exames que não descobriram o que o afligia, quando descobriram já era tarde demais, mas pelo menos agora a dor havia sumido, provavelmente graças à morfina. A esposa achava que ele já estava se recuperando. Se fosse mais jovem provavelmente ia usar essa situação como desculpa para fazer centenas de coisas que nunca fizera, mas agora, já perto dos seus noventa anos, não conseguia mais pensar assim, talvez porque não quisesse realmente fazer nada mais além daquilo que já tinha feito, ou talvez simplesmente porque os impulsos da juventude haviam passado a muitos anos e não conseguia mais ver como divertida uma coisa apenas porque nunca a tinha feito. A mulher o olhou interrogativamente enquanto enchia a xícara, estavam no café da manhã. Ele não podia dizer que a vida fora fácil, isso seria uma grade hipocrisia, nunca tivera um emprego fixo, fora pedreiro, caminhoneiro, até mesmo chegara a trabalhar como carregador em um porto, na época em que eles funcionavam de uma forma muito diferente, se aposentara quando não tinha mais condições de continuar com trabalhos como esse, vivia da ajuda dos filhos, tivera com sua mulher dois filhos e duas filhas, o filho mais novo morrera, assassinado, fora um grande choque para toda a família, desde que descobrira que estava à beira da morte pensara muito no filho morto. Tivera também um filho fora do casamento, não fazia idéia da vida que ele poderia estar levando, se é que ainda estava vivo, podia muito bem já ter morrido de velhice, já que nascera quando ele ainda era muita jovem, antes mesmo de conhecer a esposa. A vida conjugal em si também não fora nenhum mar de rosas, mas na verdade nunca é, não é mesmo? Desde que se aposentara a mulher decidira que era hora dele retornar todo o trabalho que ela tinha tido com a casa ao longo dos anos, por isso a aproximadamente três décadas ela não fazia nada, toda a tarefa doméstica era função dele, ele na verdade não se importava muito com isso, se não tivesse essas atividades provavelmente se entediaria, mas agora se preocupava em como a esposa iria sobreviver depois que ele morresse, os filhos não tinham realmente muita paciência, eles tinham as próprias vidas para levar, não é certo que os pais queiram ser um fardo assim tão pesado para os filhos apenas por que estão envelhecendo. A mulher não o amava a anos, e talvez ele também não pudesse mais dizer que a amava, eles apenas suportavam aquela pessoa com a qual tinham aprendido a viver por mais de cinqüenta anos. Mas apesar disso ele não imaginava sua vida longe dela, em algum ponto de suas vidas os dois haviam se amado, se é verdade que hoje brigavam a ponto dele não duvidar que ela de certa forma desejava que ele morresse, também é verdade que se entendiam, e que a companhia que faziam um para o outro era – ao menos para ele – uma das poucas coisas que ainda podiam fazer com que a vida valesse a pena mesmo depois dos noventa anos, mesmo depois de ver os seus netos crescidos. Foi naquele café da manhã que percebeu como queria viver os dias que lhe restavam. Ao contrário do que esperava, não iria fazer nada demais, iria continuar a levar a vida como já vinha levando a alguns anos, só que agora com a ajuda de um pouco de morfina de vez em quando. Depois de decidir isso ainda pensou em voltar atrás, “existem tantas coisas para serem feitas, por que desperdiçar o pouco tempo que me resta?” mas na verdade nem sabia como fazer isso, nunca iria se decidir sobre o que gostaria de fazer além daquilo que normalmente fazia. Pensou em escrever um livro, mas não, não lia nada a mais de uma década, nunca fora muito próximo das palavras, ou de qualquer arte. Pensou em rever os amigos de longa data, até mesmo tentou contatar os que acreditava ainda estarem vivos, não estavam, exceto um, mas esse sequer lembrou dele pelo telefone, ele suspeitou que aquele não deveria lembrar mais de nada, não conseguia realmente formar frases que fizessem muito sentido. Talvez isso seja uma daquelas coisas que vêm com a idade, ele mesmo se desacostumara a falar, quando pronunciava alguma palavra se assustava com o ruído cavernoso que saía de sua boca, de sua garganta velha e seca. Se pudesse, naquele momento, teria escolhido morrer antes, quando ainda amava a mulher e quando os amigos eram em sua cabeça pessoas sorridentes, e não com aquele ar solene que todos inevitavelmente tem ao serem colocados em seus caixões. Continuou com sua vida normal, por escolha própria mais do que por falta de opção, por coragem mais do que por medo. Viveu ainda quatro meses, deixou para trás uma mulher em lágrimas – que morreria não mais que um ano depois – e partiu desse mundo num belo e brilhante caixão preto.

***

Lá estava ela sentada frente-a-frente com ele. Ele podia dizer pelo olhar dela como a expressão no rosto dele deveria ser de total embasbacamento. Os olhos caíram no grande estojo que ela colocara ao lado dela. Ele não tinha mais nada que pudesse perguntar:

- Isso é um violoncelo?

Ela riu. Era uma risada bonita, alegre, mas combinada com os olhos dela não podia deixar de ser um pouco suja. Ele duvidava que a irmã risse daquele jeito. Ela vestia uma camisa xadrez, parecia muito jovem, bem mais jovem do que a irmã dissera que era. Mas ele tinha certeza que essa era a pessoa certa, era a pessoa que estava procurando. Não tinha muito porque se preocupar então, não é? Afinal, isso só estava acelerando seu trabalho, de alguma forma. Mas então ela começou a falar e ele começou a se envolver. Falaram de música, do violoncelo e depois de generos musicais que não costumam usar esse instrumento, depois dança, depois teatro, depois cinema e então literatura, na progressão que se espera para esse tipo de conversa. Pularam as artes plásticas, a filosofia e a política, não são realmente os melhores assuntos para se discutir naquela situação, no lugar disso falaram de cozinha, acabaram comendo comida japonesa juntos. Ela realmente não parecia estar com a menor pressa, e ele se sentiu surpreendentemente confortável com isso. Depois de jantarem ela deu para ele o número de telefone, sem que ele sequer precisasse pedí-lo. No fim da noite ele sabia quais os filmes que ela mais gostava, seus escritores e bandas preferidos, sabia onde ela iria tocar no próximo fim de semana e até mesmo aprendera um ou dois truques para o violoncelo, mas não fizera nenhuma das perguntas que supostamente havia sido contratado para fazer.

***

Só uma notinha rápida, desculpem os possíveis erros gramaticais nessa postagem, assim como na minha anterior, estou tendo alguns problemas para me adaptar com o Windows Live Writer, apesar disso ele é um programa muito bom para fazer postagens em blogs, fica a dica. Ah, e Feliz Ano Novo para todos, sejam Iridescentes sejam leitores! Até a próxima!


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