sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Atando nós.

Todos os dias, enquanto atava a gravata e se olhava no espelho, tinha de lutar consigo mesmo para não chorar, para segurar as lágrimas. Era difícil, quase impossível, mas sempre ganhava. Era nada mais que a repetição de um ritual que tinha desde a infância. Devia ter uns dez anos quando sentira uma vontade imensa de chorar enquanto amarrava os cadarços. Naquela época, havia motivo. No entanto, lutou e segurou o choro. Não para parecer mais forte e maduro do que eram seus anos, não porque achava que não valia a pena, pois valia, e sabia disso. Não sabia o motivo.Todos os dias desde então era o mesmo. Algumas vezes a vontade vinha por um motivo inquestionável, outros, pela menor das insignificâncias. Muito frequentemente vinha por motivo algum. Mas então, quando saia de casa e encarava o mundo, sabia que nada que nele existia poderia fazê-lo chorar. Nada no mundo.

Agora era um adulto, o rosto não era mais o de um menino, na verdade, já apareciam alguns sinais de idade, mesmo não sendo ainda velho. Mas a verdade é que ficara velho naquele dia em que segurara o choro enquanto amarrava o tênis. Achava que isso significava saber lidar com os próprios sentimentos: não chorar, nunca falar “eu te amo”, para ninguém, nem para a família, para os amigos, nem para a pessoa certa. Estava errado, mas se enganava, assim como se enganara naquela manhã com os sapatos e sem as lágrimas, dizendo para si mesmo que ia ficar tudo bem. Pois não ia. Não ficou e não vai ficar. Isso é certo. Nunca gostara dos livros que não tinham finais felizes, pois era só por conta do final feliz que ele conseguia deixar aquilo ir, conseguia se lembrar que aquilo não era de verdade. A verdade é um dia de chuva e uma gravata azul. Verdade é lembrar das coisas boas sabendo que não se aproveitou o suficiente porque não se deixou levar pelo sentimento. Não se deixava levar por nada. Eram só piadas sarcásticas e raiva do mundo. Raiva que não existia. O que mais queria era dizer que amava. O que mais queria era poder chorar, e ter amigos de verdade. Era dizer como o mundo e as pessoas o fascinavam. Tudo que queria era correr o mundo e conhecer tudo, aprender e ler numa cama dividida. Tudo que queria era mandar sua rotina se foder. Mas toda a manhã amarrava de volta o sentimento, prendia a si o tédio com o mais forte dos nós. Era apatia. Não sabia porque, só sabia que queria fugir e não podia. Para fazer isso teria que chorar e tinha medo. Tinha medo de tudo que sentia. Por isso perdera a chance de dizer que amava alguém entre um beijo e outro. Por isso perdeu os sonhos que tinha aos dez anos, aos poucos, morrendo de inanição. Os que tinha agora eram faz-de-conta. Eram sonhos de adulto, e adultos não sonham. Não de verdade.

E agora sentia que era tarde demais. Sua vida virara uma repetição sem sentido. Seguindo em frente apenas para ver as marcas no rosto ficarem mais profundas, para ir aos poucos se afastando de todos que lhe significassem alguma coisa. Perdera a chance de sentir algo, perdera a chance de se envolver com tudo que poderia querer: sonhos, pessoas, atividades. Se tivesse algum amigo, lhe diria que não é tarde, que é jovem. Mas nunca se é jovem o suficiente, quando se percebe, tudo já virou merda. E talvez já fosse antes, só não se tivesse percebido. Ele nunca disse adeus. Nem antes, quando deveria ter chorado e não chorou, nem depois, quando deveria ter dito que amava e não disse. Mas se despedia de si mesmo todos os dias. Cada vez mais a gravata azul – sempre azul – lhe parecia com uma forca, mas uma que ia lhe matando aos poucos. Primeiro a imaginação, depois o afeto, por último a tristeza. Quão triste é não conseguir mais ficar triste? Antes, quando ainda achava ser possível, colocara suas esperanças em diversas coisas, no livro que ia escrever, na pessoa que amava sem dizer, e por fim até em si mesmo. Destruíra tudo sem nada fazer.

Terminava o nó e se olhava no espelho. A gravata azul, o colete preto, como o resto do terno. Os olhos vermelhos, mas secos. Oito da manhã e previsão de chuva. Café preto, duas torradas e três cigarros antes de sair. Eram todos os cigarros que fumaria durante o dia. Gostava de pensar que não tinha um vício, que estava no controle, mas estava errado, como sempre. Não comeria nem beberia mais nada até voltar para casa, para o refúgio de seus pesadelos. Saía de casa e ligava o rádio. Ouvia Roger Waters dizendo “I don’t need no arms around me, and I don’t need no drugs to calm me” e sabia que ele também estava mentindo para si mesmo. É isso tudo que as pessoas faziam. Não por vontade própria, mas porque alguma coisa fazia com que não soubessem agir diferente. Era ir além dessas mentiras, era disso que gostava, era isso que o fascinava nas pessoas. E era isso que negava a si mesmo. Sabia que todos mentiam para si mesmos, mas nunca conseguira saber se todos se sentiam tão paradoxais quanto ele. É preciso amar alguém para cometer o erro de não dizê-lo. É preciso perder uma parte importante de si para chorar. Talvez as pessoas que dizem “eu te amo” o façam por não amarem, numa tentativa de forçar esse sentimento. Talvez as pessoas que choram o façam para fingir que ainda tem o que perder de si mesmas. Mas não, não era isso, sabia. Se fosse isso, as pessoas o encantariam muito mais do que o faziam de fato, esse era um problema seu, e se os outros tinham algo em comum com ele é que todos tinham cada qual seu próprio problema. Sentia o cheiro de asfalto molhado antes de começar a chover.

Na manhã seguinte era tudo igual. A gravata, os olhos vermelhos, o café, as torradas, os cigarros. A previsão é de chuva forte no fim da tarde, céu cinza o dia todo. Para sempre. Sempre.


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sábado, 6 de outubro de 2012

Era (ou tentativa de prosa poética #28)

Era um daqueles dias em que o Sol parece estar a pino mesmo cedo da manhã, ou mesmo pouco antes de desaparecer de vez. Mas era justamente o meio do caminho. Meio dia ou algo assim. Surpreendentemente, isso não queria dizer que estava quente, era simplesmente um dia claro de primavera. O céu, quase azul demais para suportar, sem nuvens, sem esperanças; ou medo.
Era um bairro histórico. Coisa que no novo mundo quer dizer algo muito incerto. Apenas um amontoado de casas velhas, algumas das quais haviam sido vagamente importantes no passado, a arquitetura incluía de tudo, desde colunas coríntias até rococós em falsas sacadas, sem esquecer, claro, das caixinhas azuis coloniais. Nada tinha a menor utilidade, tudo muito kitsch, e por isso agradava tanto aos jovens. Tanto os que afetadamente confundiam kitsch e sofisticação quanto os que buscavam a diferença e o real vivendo na sujeira do mundo, que no fim é só uma forma diferente de kitsch. E eu era apenas um dentre esses. Não importa de qual grupo, eu não sou importante nessa história.
Era um café pequeno, espremido entre uma galeria e uma casa velha. E meu café já estava frio quando a vi.
Era linda.
Era como uma borboleta.
Era o cabelo, loiro e longo como o fim do mundo.
Era o vestido, rodado e florido, branco, leve, de verão, visivelmente fino, infelizmente opaco; que dançava enquanto ela andava, e deixava à mostra os tornozelos. E os ombros ligeiramente largos para além das alças.
Era o fato de levar na mão as sapatilhas e no rosto um sorriso adulto, mas que não deixava de ser inocente.
Era a alegria daqueles pés descalços. Impensavelmente descalços. Inesquecivelmente descalços.
Era o andar incerto e cambaleante, de quem dança, de quem é louca.
Era o olhar. Aqueles olhos que finalmente tinham encontrado.
Era poesia diante de meus olhos e de minhas lentes escuras.
Era a luz do Sol, o azul do céu e as flores.
Era o brilho dourado no ar ao redor.
Era epifania. Mas não minha.
Era viva. 

***

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sábado, 4 de fevereiro de 2012

Lost In The Supermarket

Era para ser uma coisa simples. Todo mundo vai ao supermercado, não tem nenhum desafio nisso, nenhum mistério. Não é também como se eu nunca tivesse ido em um. Não num tão grande quanto aquele, isso é verdade, mas não pensei que fosse acontecer algo como me aconteceu.

Tinham me falado daquele lugar, falavam que lá era possível encontrar tudo, qualquer coisa que quisesse comprar, e a um preço justo, todos pareciam sair de lá satisfeitos. Se é que era possível para um supermercado, o lugar estava se transformando numa espécie de point, até mesmo meus amigos mais alternativos comentavam, esperava que eles fossem até esses lugares, hoje em dia é inevitável, mas não eram o tipo de pessoas que se orgulhariam disso, alguns até teriam vergonha de ter de recorrer a uma grande cadeia de supermercados, mesmo que esporadicamente. Fiquei, portanto, curioso. E foi por essa curiosidade que decidi, num dia particularmente entediante, atravessar boa parte da cidade e ver se realmente tinham motivo para tudo isso. 

Não tinha muita coisa para comprar, não, eram simples utensílios rotineiros, que não precisaria ir até lá para comprar. De fora dava para ver que era gigantesco. Quando era mais jovem, lembro de uma discussão que tive com um amigo sobre a transferência de centro na cultura ocidental, que cada vez mais era ocupado por lojas, shoppings e afins, e como isso se refletia na arquitetura. Eu não era grande expert na área, então fazia leves divagações sobre o tema, em determinado momento comparando a importância que hoje se dava aos shoppings à que décadas e séculos atrás se dava às igrejas, nada muito complexo, coisa que eu mesmo devia ter ouvido em algum outro lugar, falado por pessoas com ainda menos base do que eu. Meu amigo, por sua vez, era arquiteto, e, portanto, falou montes de coisas que deveriam ser mais profundas e verdadeiras, mas das quais entendi muito pouco. 

Vendo aquilo era difícil não achar exagerado, era muito grande, muito monumental, parecia um shopping inteiro, por mais que houvessem me dito que era uma única loja. Era difícil até mesmo saber se eram muitas as pessoas que estavam lá, era difícil fazer uma escala comparando com o tamanho do lugar, parecia muito esparso. Muitos dos caixas sequer estavam funcionando, mas talvez por também serem muitos. Haviam carrinhos e cestas de todos os tamanhos, em várias cores. Os carrinhos aparentemente todos em boas condições, sem aquelas rodas problemáticas tão comuns. Mas era de se esperar, o lugar tinha aberto a pouco tempo.

Era inevitável, passeando por todas aquelas ilhas dos mais variados produtos - alguns dos quais com rótulos estrangeiros estranhíssimos que praticamente inviabilizavam a identificação – deixar de pensar em como o consumo se entranhara na sociedade moderna, a ponto de serem edificados monumentos como aqueles. Não estou sequer falando em análises profundas sobre tudo que aquilo significava na ordem capitalista, ou todo os valores, trabalhos e histórias que se escondiam naquelas embalagens e em suas marcas, não, por mais que não descarte essas reflexões, dificilmente vou fazê-las ao mesmo tempo que encho o meu carrinho de compras das coisas que vou precisar para o mês. A reflexão ia muito mais por esse caminho do “precisar”, das necessidades fabricadas, de onde estaríamos sem tudo aquilo, se tudo aquilo realmente significava algo para as pessoas que o compravam além de uma simples atitude mecânica sem reais fins e princípios. 

O lugar me dava um pouco de medo de inicio. Os corredores infinitos, nos quais nem sempre encontrava pessoas, os grandes banners anunciando promoções, o teto distante, a claridade que lembrava um hospital, uma sala de cirurgia. O clima e até mesmo o cheiro também não eram muito diferentes de um hospital. Mas mesmo aí estava tudo bem.

No entanto, em determinado momento, percebi que estava perdido. 

Não conseguia ver onde ficavam os caixas, e já tinha perambulado tanto pelo lugar que não conseguia refazer meus passos. Era como se, ao tentar voltar por onde viera, tudo tivesse mudado, os produtos, os banners, até mesmo as prateleiras. Era como se sempre fizesse a curva para o lado errado, era como se fosse um labirinto. A primeira reação foi rir de mim mesmo. Nunca fora uma pessoa com o melhor dos sensos de direção, e o lugar era grande, me perder lá dentro era uma coisa engraçada, no fim das contas. Continuei tentando, continuei não conseguindo.

A paciência foi acabando, então resolvi pedir direções para alguma das pessoas que encontrava pelos corredores. Não consegui evitar me sentir envergonhado ao me aproximar da primeira para perguntar onde ficava a saída, e receber acenos vagos como resposta. E não deu certo. Com a segunda pessoa, não me envergonhava apenas de não saber encontrar o caminho, mas era também uma vergonha interna por não ter entendido a primeira pessoa e precisar perguntar a uma segunda. Essa deu direções mais precisas, às quais segui à risca, sem, no entanto, gerar resultados. À terceira pessoa fiz a pergunta já com um certo desespero. O resultado foi o mesmo. 

Com o tempo ficou cada vez mais difícil encontrar pessoas, elas foram ficando cada vez mais raras, o que me deu a impressão de estar indo na direção errada, mas não desisti. Ao encontrar outra pessoa, decidi que não faria perguntas, simplesmente a seguiria. E fui assim fazendo isso através dos corredores de materiais de limpeza, uns só para sabão em pó, dois ou talvez três para detergentes. Através dos incontáveis corredores de lâmpadas, fluorescentes, fosforescentes, curtas, longas, amarelas, brancas, negras, econômicas. Talvez a pessoa que seguia (uma senhora de meia idade, com um ar de dona-de-casa inegável) tenha percebido a minha perseguição e tratado de fugir com toda sua força, pois de repente, ao virar a esquina de um corredor para outro, ela simplesmente não estava lá. Nunca voltei a vê-la, assim como não voltei a ver nenhuma das outras pessoas às quais tinha pedido informação ou mesmo aquelas com as quais simplesmente tinha cruzado. Estava sozinho no supermercado.

Tudo piorou quando as luzes se apagaram. Aparentemente o lugar não funcionava 24 horas. Todo o ambiente do lugar impedia que a escuridão fosse total, mas a penumbra num lugar daqueles já era assustadora. E assim começaram a passar meus dias: as luzes ascendiam, eu vagava, sem encontrar vivalma, as luzes apagavam à noite. Com o tempo perdi os pudores e passei a consumir coisas da loja, não poderia arriscar minha sobrevivência. Algumas vezes passava por lugares que me pareciam conhecidos, algumas vezes tinha certeza que já passara por ali, mas agora estava tudo diferente. Percebi que os produtos perecíveis estavam sempre na validade, que tudo era vez ou outra trocado, substituído por coisas novas. Passei então a ficar de tocaia, esperando alguém que viesse fazer as substituições e implorar por ajuda, sem me importar se iria parecer um louco. Mas essas pessoas nunca apareciam. Eu podia passar horas, dias esperando e elas nunca apareciam. Mas bastava virar as costas e tudo mudava. A raiva crescia de uma forma assustadora. Destruí prateleiras, derrubei produtos, tudo permanecia impassível. 

A única forma que me pareceu viável de impedir a loucura foi através da criação de personagens. Fingi que estava tudo bem, que estava fazendo compras normalmente. Retirava os itens das prateleiras para mais para a frente recolocá-los, sem me importar se estavam no lugar certo. Corria para aproveitar as promoções, não conseguia raciocinar, tudo parecia tão irreal. Não conseguia pensar em nada, talvez até conseguisse sentir minha cabeça se esvaziando de todo pensamento racional, se é que ainda conseguia sentir alguma coisa. Posso ter ficado ali por anos fazendo isso, nunca saberia. E provavelmente nunca pensaria em nada, nem mesmo na desgraça em que me encontrava se um dia não tivesse ouvido a voz que vinha de lugar nenhum. A Loja, o Todo-poderoso Supermercado, a Entidade que quebrara minha alma e minha razão fazia um anúncio. Qual foi a minha esperança desmedida a ouvir aqueles sons, primeiro dúvida, seria real? Sim, era real, o que diriam? Teriam percebido a assombração que era eu rondando os corredores? Será que me ajudariam? Não, nunca. Com frieza e imparcialidade, a Voz simplesmente pediu que os clientes fizessem o favor de não recolocar os produtos em prateleiras às quais não pertenciam, e então se calou, provavelmente para sempre. Eu ri, ri como um louco, e continuei meu caminho. 

Não saberia dizer quanto tempo depois disso, quantas centenas de vezes as luzes tinham apagado e acendido até o dia em que encontrei a escada. Era uma escada rolante, que subia, subia uma grande altura, sabe-se lá para onde. Passei horas aos seus pés, refletindo. Sabia que nunca tinha passado por ali, sabia que tinha entrado pelo mesmo andar no qual ainda vagava. Mas a dúvida era cruel, será mesmo? Será que não mudei de piso sem perceber? Será que por isso não encontrava a saída? No fim das contas, já tinha tentado tudo que podia aqui nesse andar, será que não era melhor arriscar o próximo, podia haver uma saída ali, um caminho mais fácil, um caminho que pudesse ser encontrado. Decidi então arriscar, deixei ali embaixo meu carrinho e subi a escada, ansioso para ver o que existia lá em cima. 

Faltando ainda alguns degraus pude ver. Uma seção de brinquedos, brinquedos horrendos, grandes bonecos e palhaços de plástico olhando em minha direção, olhando e rindo. Me apavorando. Tentei correr de volta, descer a escada rolante que subia, tentei com todas as minhas forças, mas nunca cheguei à metade do caminho de volta, minhas pernas me traíram. Pensei em me jogar, mas era alto demais, e estava fraco, ninguém viriam me ajudar. Não queria morrer, queria sair dali. Minhas esperanças se foram por completo. Aos pés de bonecas e palhaços, me ajoelhei e me pus a chorar.

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