sábado, 4 de fevereiro de 2012

Lost In The Supermarket

Era para ser uma coisa simples. Todo mundo vai ao supermercado, não tem nenhum desafio nisso, nenhum mistério. Não é também como se eu nunca tivesse ido em um. Não num tão grande quanto aquele, isso é verdade, mas não pensei que fosse acontecer algo como me aconteceu.

Tinham me falado daquele lugar, falavam que lá era possível encontrar tudo, qualquer coisa que quisesse comprar, e a um preço justo, todos pareciam sair de lá satisfeitos. Se é que era possível para um supermercado, o lugar estava se transformando numa espécie de point, até mesmo meus amigos mais alternativos comentavam, esperava que eles fossem até esses lugares, hoje em dia é inevitável, mas não eram o tipo de pessoas que se orgulhariam disso, alguns até teriam vergonha de ter de recorrer a uma grande cadeia de supermercados, mesmo que esporadicamente. Fiquei, portanto, curioso. E foi por essa curiosidade que decidi, num dia particularmente entediante, atravessar boa parte da cidade e ver se realmente tinham motivo para tudo isso. 

Não tinha muita coisa para comprar, não, eram simples utensílios rotineiros, que não precisaria ir até lá para comprar. De fora dava para ver que era gigantesco. Quando era mais jovem, lembro de uma discussão que tive com um amigo sobre a transferência de centro na cultura ocidental, que cada vez mais era ocupado por lojas, shoppings e afins, e como isso se refletia na arquitetura. Eu não era grande expert na área, então fazia leves divagações sobre o tema, em determinado momento comparando a importância que hoje se dava aos shoppings à que décadas e séculos atrás se dava às igrejas, nada muito complexo, coisa que eu mesmo devia ter ouvido em algum outro lugar, falado por pessoas com ainda menos base do que eu. Meu amigo, por sua vez, era arquiteto, e, portanto, falou montes de coisas que deveriam ser mais profundas e verdadeiras, mas das quais entendi muito pouco. 

Vendo aquilo era difícil não achar exagerado, era muito grande, muito monumental, parecia um shopping inteiro, por mais que houvessem me dito que era uma única loja. Era difícil até mesmo saber se eram muitas as pessoas que estavam lá, era difícil fazer uma escala comparando com o tamanho do lugar, parecia muito esparso. Muitos dos caixas sequer estavam funcionando, mas talvez por também serem muitos. Haviam carrinhos e cestas de todos os tamanhos, em várias cores. Os carrinhos aparentemente todos em boas condições, sem aquelas rodas problemáticas tão comuns. Mas era de se esperar, o lugar tinha aberto a pouco tempo.

Era inevitável, passeando por todas aquelas ilhas dos mais variados produtos - alguns dos quais com rótulos estrangeiros estranhíssimos que praticamente inviabilizavam a identificação – deixar de pensar em como o consumo se entranhara na sociedade moderna, a ponto de serem edificados monumentos como aqueles. Não estou sequer falando em análises profundas sobre tudo que aquilo significava na ordem capitalista, ou todo os valores, trabalhos e histórias que se escondiam naquelas embalagens e em suas marcas, não, por mais que não descarte essas reflexões, dificilmente vou fazê-las ao mesmo tempo que encho o meu carrinho de compras das coisas que vou precisar para o mês. A reflexão ia muito mais por esse caminho do “precisar”, das necessidades fabricadas, de onde estaríamos sem tudo aquilo, se tudo aquilo realmente significava algo para as pessoas que o compravam além de uma simples atitude mecânica sem reais fins e princípios. 

O lugar me dava um pouco de medo de inicio. Os corredores infinitos, nos quais nem sempre encontrava pessoas, os grandes banners anunciando promoções, o teto distante, a claridade que lembrava um hospital, uma sala de cirurgia. O clima e até mesmo o cheiro também não eram muito diferentes de um hospital. Mas mesmo aí estava tudo bem.

No entanto, em determinado momento, percebi que estava perdido. 

Não conseguia ver onde ficavam os caixas, e já tinha perambulado tanto pelo lugar que não conseguia refazer meus passos. Era como se, ao tentar voltar por onde viera, tudo tivesse mudado, os produtos, os banners, até mesmo as prateleiras. Era como se sempre fizesse a curva para o lado errado, era como se fosse um labirinto. A primeira reação foi rir de mim mesmo. Nunca fora uma pessoa com o melhor dos sensos de direção, e o lugar era grande, me perder lá dentro era uma coisa engraçada, no fim das contas. Continuei tentando, continuei não conseguindo.

A paciência foi acabando, então resolvi pedir direções para alguma das pessoas que encontrava pelos corredores. Não consegui evitar me sentir envergonhado ao me aproximar da primeira para perguntar onde ficava a saída, e receber acenos vagos como resposta. E não deu certo. Com a segunda pessoa, não me envergonhava apenas de não saber encontrar o caminho, mas era também uma vergonha interna por não ter entendido a primeira pessoa e precisar perguntar a uma segunda. Essa deu direções mais precisas, às quais segui à risca, sem, no entanto, gerar resultados. À terceira pessoa fiz a pergunta já com um certo desespero. O resultado foi o mesmo. 

Com o tempo ficou cada vez mais difícil encontrar pessoas, elas foram ficando cada vez mais raras, o que me deu a impressão de estar indo na direção errada, mas não desisti. Ao encontrar outra pessoa, decidi que não faria perguntas, simplesmente a seguiria. E fui assim fazendo isso através dos corredores de materiais de limpeza, uns só para sabão em pó, dois ou talvez três para detergentes. Através dos incontáveis corredores de lâmpadas, fluorescentes, fosforescentes, curtas, longas, amarelas, brancas, negras, econômicas. Talvez a pessoa que seguia (uma senhora de meia idade, com um ar de dona-de-casa inegável) tenha percebido a minha perseguição e tratado de fugir com toda sua força, pois de repente, ao virar a esquina de um corredor para outro, ela simplesmente não estava lá. Nunca voltei a vê-la, assim como não voltei a ver nenhuma das outras pessoas às quais tinha pedido informação ou mesmo aquelas com as quais simplesmente tinha cruzado. Estava sozinho no supermercado.

Tudo piorou quando as luzes se apagaram. Aparentemente o lugar não funcionava 24 horas. Todo o ambiente do lugar impedia que a escuridão fosse total, mas a penumbra num lugar daqueles já era assustadora. E assim começaram a passar meus dias: as luzes ascendiam, eu vagava, sem encontrar vivalma, as luzes apagavam à noite. Com o tempo perdi os pudores e passei a consumir coisas da loja, não poderia arriscar minha sobrevivência. Algumas vezes passava por lugares que me pareciam conhecidos, algumas vezes tinha certeza que já passara por ali, mas agora estava tudo diferente. Percebi que os produtos perecíveis estavam sempre na validade, que tudo era vez ou outra trocado, substituído por coisas novas. Passei então a ficar de tocaia, esperando alguém que viesse fazer as substituições e implorar por ajuda, sem me importar se iria parecer um louco. Mas essas pessoas nunca apareciam. Eu podia passar horas, dias esperando e elas nunca apareciam. Mas bastava virar as costas e tudo mudava. A raiva crescia de uma forma assustadora. Destruí prateleiras, derrubei produtos, tudo permanecia impassível. 

A única forma que me pareceu viável de impedir a loucura foi através da criação de personagens. Fingi que estava tudo bem, que estava fazendo compras normalmente. Retirava os itens das prateleiras para mais para a frente recolocá-los, sem me importar se estavam no lugar certo. Corria para aproveitar as promoções, não conseguia raciocinar, tudo parecia tão irreal. Não conseguia pensar em nada, talvez até conseguisse sentir minha cabeça se esvaziando de todo pensamento racional, se é que ainda conseguia sentir alguma coisa. Posso ter ficado ali por anos fazendo isso, nunca saberia. E provavelmente nunca pensaria em nada, nem mesmo na desgraça em que me encontrava se um dia não tivesse ouvido a voz que vinha de lugar nenhum. A Loja, o Todo-poderoso Supermercado, a Entidade que quebrara minha alma e minha razão fazia um anúncio. Qual foi a minha esperança desmedida a ouvir aqueles sons, primeiro dúvida, seria real? Sim, era real, o que diriam? Teriam percebido a assombração que era eu rondando os corredores? Será que me ajudariam? Não, nunca. Com frieza e imparcialidade, a Voz simplesmente pediu que os clientes fizessem o favor de não recolocar os produtos em prateleiras às quais não pertenciam, e então se calou, provavelmente para sempre. Eu ri, ri como um louco, e continuei meu caminho. 

Não saberia dizer quanto tempo depois disso, quantas centenas de vezes as luzes tinham apagado e acendido até o dia em que encontrei a escada. Era uma escada rolante, que subia, subia uma grande altura, sabe-se lá para onde. Passei horas aos seus pés, refletindo. Sabia que nunca tinha passado por ali, sabia que tinha entrado pelo mesmo andar no qual ainda vagava. Mas a dúvida era cruel, será mesmo? Será que não mudei de piso sem perceber? Será que por isso não encontrava a saída? No fim das contas, já tinha tentado tudo que podia aqui nesse andar, será que não era melhor arriscar o próximo, podia haver uma saída ali, um caminho mais fácil, um caminho que pudesse ser encontrado. Decidi então arriscar, deixei ali embaixo meu carrinho e subi a escada, ansioso para ver o que existia lá em cima. 

Faltando ainda alguns degraus pude ver. Uma seção de brinquedos, brinquedos horrendos, grandes bonecos e palhaços de plástico olhando em minha direção, olhando e rindo. Me apavorando. Tentei correr de volta, descer a escada rolante que subia, tentei com todas as minhas forças, mas nunca cheguei à metade do caminho de volta, minhas pernas me traíram. Pensei em me jogar, mas era alto demais, e estava fraco, ninguém viriam me ajudar. Não queria morrer, queria sair dali. Minhas esperanças se foram por completo. Aos pés de bonecas e palhaços, me ajoelhei e me pus a chorar.

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