domingo, 27 de fevereiro de 2011

Pulp Literature #3

“Build me up buttercup, don’t break my heart”

- The Foundations

 

A realidade existe simplesmente para servir de inspiração à arte.

***

Anos atrás eu costumava olhar para as duas e não conseguia deixar de pensar que as coisas estavam finalmente certas. Nunca fora fácil, definitivamente não acredito que qualquer pessoa diria que para chegar até aquele ponto minha vida não havia passado por suas eventualidades. Duvido muito também que alguém que me visse então discordasse que tudo que me tinha ocorrido de mal tinha valido a pena. É o sonho de muitos, não duvido. Mas também não duvido da infinita capacidade humana de se sentir insatisfeito, de não conseguir ser feliz. Ou será que a felicidade é apenas o momento? Não, não é, o momento é alegria, é apenas a esperança de felicidade, e esperança é uma sensação quase tão gratificante quanto felicidade. Pelo menos assim imagino, já que hoje sei que nunca fui feliz, apenas tive esperança de sê-lo. Isso é basicamente o que acontece com todas as pessoas quando elas pensam que são felizes.

Mas o fato é que quando via as duas juntas, a mãe brincando com a filha, acreditava que aquilo era felicidade, que queria que aquilo durasse para sempre. Mas o momento acabou. E isso foi a anos atrás. Não sou mais jovem. Não como era quando minha filha nasceu. Não como era quando conheci a mãe dela. Não como achei que continuaria sendo para sempre. As pequenas coisas com o tempo vão destruindo tudo aquilo que achava que tinha. Um belo dia olhei no espelho e vi que parecia mais com meu pai do que algum dia gostaria de parecer, fui para o trabalho e percebi que as conversas mais divertidas, nas quais os mais jovens se divertiam aconteciam sempre quando eu não estava lá, percebi que minha filha já não tinha mais um sorriso inocente como quando era um bebê, muito pelo contrário, tinha quase a mesma idade que a mãe dela tinha quando a conheci, e isso me deixou com medo de que ela conhecesse um homem imprestável como eu era na época. Ela era exatamente igual à mãe quando jovem, mas certamente não acreditaria nisso, não importa quem falasse ou quantas fotos antigas olhasse, era inconcebível para ela que em alguns anos fosse ficar no mesmo estado de sua mãe. Isso porque a mãe certamente não tinha mais muitas coisas pelas quais o jovem que fui se apaixonou, mas isso é compreensível, eu definitivamente mudara ainda mais. Já a algum tempo estávamos tentando ter mais um filho, ou melhor, ela queria mais um filho, para mim era simplesmente indiferente, ela queria se sentir como se sentira quando nossa filha nascera, eu naquele dia perdi todas as esperanças que ainda poderia ter de que isso algum dia pudesse acontecer. Naquela noite não tentamos.

Na manhã seguinte a idéia de olhar para ela ao acordar era repulsiva. Não porque à achasse feia. Por mais que isso pudesse ser verdade, eu a amara – e realmente a amara – por tanto tempo que não conseguia concebê-la como sendo feia, mas não podia suportar a manifestação de todo o tempo que passamos juntos no rosto dela.

Muitas pessoas durante os anos me disseram que queriam uma vida como a minha, uma família bonita como a minha. Essas pessoas acham que ter esse tipo de coisa faria com que elas fossem mais feliz do que são com aquelas que tem. Essas pessoas acham que o mundo é injusto porque algumas pessoas tem a possibilidade de serem felizes – e elas me incluem nesse grupo – e outras não tem – e elas sempre incluem a si mesmas nesse – mas elas estão erradas. O mundo é injusto, disso não tenho dúvidas, mas não pelos motivos que elas querem ver. O mundo é injusto porque todas as pessoas, não importa quem elas sejam, o que elas tenham ou o que elas façam, todas as pessoas são essencialmente insatisfeitas. Mas o mundo é tão justo quanto é injusto, pois todos, sem exceção, tem o direito àqueles momentos – que por vezes duram mais do que simples momentos – nos quais acham que são felizes. Até que finalmente esse momento passa e não existe nenhum motivo para pensar que algum dia ele poderá voltar.

Mas então, em uma noite qualquer, o mundo te faz voltar para casa depois de um dia de trabalho extenuante, e você vê sua filha saindo de casa, no meio da noite, sem avisar aos pais com um cara com uma guitarra nas costas, um cara que de certa forma te faz lembrar de como você era muito antes dele nascer. Então eu entro em casa, jogo o paletó no chão, afrouxo a gravata e abro alguns botões da camisa, pego a velha máquina de escrever e começo a bater nos tipos até a mulher acordar e me abraçar por trás. Naquele momento você imagina ela não como é hoje, mas como era anos atrás, e sem nem mesmo perceber aquilo que os são chamariam da realidade, leva ela para a cama e percebe que os olhos são os mesmos. E percebe que aqueles momentos podem voltar, percebe que ainda consegue ter esperança, mesmo sabendo que ela é vã, e mesmo sabendo que aquilo é só um momento.
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quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Pulp Literature #2

Acordei no chão, completamente nu. Já havia me acostumado a dores nas costas, meus hábitos não eram dos mais sadios, causavam torcicolo com freqüência. Uma grande mancha roxa estava no meu braço direito, perto do ombro. Um copo caíra no chão e se quebrara, diversos cacos de vidro se espalharam, alguns me cortaram, mas nada muito profundo, apenas algumas gotas de sangue no piso branco da cozinha. A cabeça também dói, mas não foi uma pancada. A toalha, também branca e também com algumas gotas de sangue em si está estendida. Ninguém deve ter me ouvido cair, e se ouviram sem dúvida pensaram que era outra coisa qualquer. Agora já começava a escurecer. Por sorte não estava com os óculos. Se bem que quase nunca estava com eles. Mas fui até o meu quanto e os coloquei, para poder pegar todos os cacos de vidro.

Depois de catados os cacos me sentei numa das pequenas cadeiras metálicas. Os últimos dias haviam sido tão estranhos. Não completamente desagradáveis, mas ainda assim estranhos. Aquela queda provavelmente queria dizer que eu não tinha vocação para Buda. Fui para a cama devagar, ainda um pouco tonto. Nem percebi quando adormeci. Quando acordei já era noite, e estava tudo um tanto silencioso, mas por ali as coisas sempre eram silenciosas, ou será que as pessoas ficam tão habituadas com os sons da cidade que depois de um tempo simplesmente não conseguem mais reconhecer o que é silêncio de verdade? Havia escolhido aquela casa exatamente por que era mais silenciosa que a minha anterior, e menor, alguém como eu não tem necessidade de casas muito grandes, isso quando precisamos de uma casa fixa. Não me importei em ver a hora. simplesmente vesti uma roupa qualquer e saí. Poderiam ser nove da noite ou três da manhã, mas não fazia tanta diferença. Ali perto havia uma pequena loja 24hrs. A loja estava vazia, apenas a atendente lia uma revista televisiva atrás do balcão. Parecia cansada, mas todas as pessoas que trabalham me parecem cansadas, ou melhor, todas as pessoas me parecem cansadas quando olho para elas, até eu mesmo. Por isso não tenho espelhos em casa. Uma coisa a menos para ser quebrada acidentalmente. Comprei vário tipos de comida de fácil preparo, por mais que não goste delas. Também alguns copos descartáveis.

A moça no balcão sorriu para mim. Tempos atrás teria visto aquilo com outros olhos, agora sabia que aquilo não queria dizer nada, só um ato um tanto mecânico. Era uma boa atendente. Mesmo sem espelhos em casa sabia que minha aparência devia estar extremamente maltratada, especialmente se alguns cacos de vidros tivessem atingido meu rosto.

Ao chegar em casa preparei alguma coisa, não sei realmente o que, não estava pensando nisso, e comi. Provavelmente isso ia me impedir de cair pelos cantos, ao menos nos próximos tempos. É estranho como esse senso de sobrevivência funciona. É como se fome, sede e atração funcionassem como um piloto automático, só não dão resultados quando são impedidos de funcionar, ou desligados, permanentemente. Voltei para a cama. e peguei a carta que estava ali no chão ao lado dela. Algumas pessoas realmente desligam o programa.


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