domingo, 3 de abril de 2011

Pulp Literature #4

112Essa noite sonhei com ela. Não posso dizer que não foi um sonho estranho, porque sem dúvida foi. Ou melhor, talvez não tenha sido de todo estranho, simplesmente não estou acostumado a sonhos desse tipo, não estou acostumado a sonhos que façam tanto sentido ou que me digam alguma coisa de forma tão clara. A maior parte do sonho foi uma simples conversa sobre trivialidades, amenidades. Não vou saber dizer o que foi dito, ou qual foram os temas abordados, foi um sonhos, as coisas não funcionam desse jeito, não lembramos de todos os detalhes horas depois de estarmos acordados. Normalmente deixo ao lado da cama um pequeno caderno de anotações, para escrever aquilo que se passou em minha cabeça durante a noite, muitas de minhas estórias surgem dessa forma, mas normalmente são estórias das quais não gosto muito, são alta-fantasia ou simplesmente apresentam lacunas ou falhas enormes, que eu obviamente não conseguia identificar enquanto estava dormindo, Quase todas então são alguns rabiscos, coisas que nunca vão ver a luz do dia. Mas essa é uma situação diferente.
Não vi necessidade de escrever os acontecimentos do meu sonho. Não eram de grande importância para uma estória. Pelo contrário, eram muito pessoais. Agora não me lembro sobre o que conversamos no sonho. Mas ainda assim tenho uma vaga ideia. Mas, como disse, não faz diferença, não é sobre isso que quero falar. Quero falar que por mais que não lembre sobre o que estávamos conversando, lembro claramente que estava feliz. E me permito à liberdade de pensar que ela também estava, afinal era um sonho meu, e as imagens que conservo em minha mente não me desmentem. É impressionante como algumas imagens de sonhos nunca saem de nossas cabeças. Mas agora que penso nisso, talvez não sejam realmente coisas tiradas de sonhos, mas sim imagens reais das quais não consigo dissociar a sensação onírica – detesto essa palavra, mas não consegui pensar em nada mais apropriado enquanto meus dedos correm pelos tipos da máquina de datilografar.
Mas o que realmente me fez pensar foi o que veio depois disso. Eu não sou o tipo de pessoa que costuma ter sonhos eróticos, veja bem. Não sei dizer exatamente o porquê disso, mas o fato é que posso contar nos dedos de minhas mãos a quantidade de vezes que já sonhei com esse tipo de coisa. Mas o fato é que que o que se seguiu provavelmente pode ser descrito como um sonho erótico. Não vou descrever os mínimos detalhes, isso não é um texto sensacionalista e se o fizesse estaria inventando tudo, pois não lembro dos detalhes, e meu objetivo não podia se mais incompatível com o desenrolar do ato sexual. E ao escrever isso me surpreendo, pois não consigo realmente imaginar esse tipo de palavras saindo da minha boca na vida real, todo esse pseudomoralismo realmente não tem muito a ver comigo. Mas a máquina não rejeita nada, e nela não corro o rico de arrancar a língua com meus próprios dentes simplesmente por ter falado algo que de forma alguma é compatível com o meu comportamento habitual. Afinal escrever não é nada além de mentir pra o papel, e é ele por sua vez que mente para os leitores, não o escritor.
Mas se deixo de lado essa oportunidade que não muitas vezes aparece de fazer comentários lascivos é porque o que vou dizer agora, neste parágrafo teve sobre mim um efeito que não consigo até agora entender completamente. Ao sonhar eu sabia que a pessoa com quem fazia amor não era ela. Era completamente diferente: a cor de seus cabelos, olhos e pele, suas formas, suas proporções, desde seus trejeitos mais suaves até mesmo as diferenças mais gritantes. Não era ela. Mas ao mesmo tempo tinha de ser. Mesmo no sonho me parecia inconcebível que não fosse, mais até do que pareceria se estivesse acordado, sem sombra de dúvida. Não era ela, mas eu não conseguia aceitar que não fosse, então, de fato, era, mesmo não sendo. Não sou um grande intérprete de sonhos, eu reconheço que eles querem me dizer alguma coisa, mas dificilmente algo diferente do que eu quero dizer a mim mesmo. A ideia de dormir com ela era tão inconcebível, tão longe da realidade, que mesmo inconscientemente meu cérebro parece indisposto a aceitar.
***
Ele estava sentado na velha cadeira de balanço vendo o por do sol. Estava em frente a uma daquelas casas de madeira que só podem ser encontradas naquela região. Sempre achara aquilo exótico, de onde viera as casas podiam ser feitas de muitas coisas, mas madeira certamente não era uma delas, exceto talvez por alguns detalhes. Mas aquilo fora muitos anos atrás. Agora estava acostumado a sentar ali, na frente daquela casa, na velha cadeira de balanço algumas horas antes do por-do-sol, o cachorro, velho e cego caído de um dos lados, se aproveitando dos raios de sol até o último, e depois indo para dentro da casa procurar um lugar para se proteger do frio que costumava chegar à noite e fazer doer os seus ossos.
De certa forma aquilo servia também para o homem. Todos os dias sentava-se ali e lia a bíblia que a muitos anos atrás fora de seu pai. Não era um homem religioso, mas já tinha lido várias vezes todos os outros livros que tinha em casa. E o velho livro aguçava a sua imaginação. Quando se via naquela situação lembrava do pai. Eram muito parecidos, agora ele conseguia ver isso. Ele nunca quisera ser parecido com o pai, por mais que tivessem um relacionamento bom. E as vezes se sentia feliz que não tinha nenhum filho para se sentir como ele agora se sentia dentro de alguns anos.
Nos cabos telefônicos algumas andorinhas observavam o por-do-sol junto do homem. Era uma visão bonita, aqueles pássaros. E era um anoitecer bonito, mais bonito que os que costumava observar depois de colocar a bíblia sobre os joelhos e começar a pensar em como era parecido  com o pai. Talvez fosse mais bonito por causa das andorinhas. Elas não cantavam como alguns outros pássaros, mas ainda assim era uma coisa bonita de se ver: aquele Sol enorme e alaranjado sumindo aos poucos, o jogo de sombras com os cabos telefônicos, com as andorinhas, com o próprio homem sentado na sua cadeira de balanço. Só o cachorro não via isso. Olhos fechados, simplesmente sentia os raios de sol no seu pelo, e o medo do frio que vem com a noite.
Morreu sem muito alarde. O Sol se pôs, as andorinhas voaram, não se sabe para onde, não existiam mais sombras, apenas a noite escura e fria. Nunca mais ia ficar a tarde ali na frente da velha casa. Dessa vez o Sol se pôs de verdade.
O homem se levantou da cadeira como se já soubesse que o cachorro tinha morrido, ergueu ele nos braços e o levou para dentro de casa, logo ele ia estar em um lugar quente, onde seus ossos não iam mais doer por causa do frio.

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