quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Improvisadores (parte 1, provavelmente)

Todos sabiam que, caso algum dia entrassem em alguma confusão, o culpado disso seria Hector. Eles todos moravam juntos, mas nem Daniel nem Júlio conseguiriam dizer que sabiam muito bem as coisas nas quais Hector se metia quando eles não estavam por perto. Sabiam, no entanto, que essas coisas não poderiam ser boas. Isso pelo arquétipo no qual enquadravam o companheiro de quarto: Hector era largado, não se importava com nada, não levava os estudos a sério, assim como não levava nada a sério. Não eram poucas as noites nas quais ele simplesmente sumia, sem avisar nenhum dos outros dois. Das primeiras vezes foi impossível que não se preocupassem, eram todos auto-exilados de cidades pequenas tentando a vida na cidade grande. Ou melhor, tentando tentar a vida, já que estavam os três fazendo cursinho e isso dificilmente pode ser chamado de vida. Daniel era o que se preocupava mais. Tinha em si aquele espírito taurino de comodidade máxima e que procura sempre a segurança, aquele espírito que é tão comum nos pais e em outras pessoas que para eles eram velhas, mesmo quando não são taurinas. Júlio desistiu de se preocupar com Hector muito rapidamente, tinha mais o que fazer. Mas Daniel não conseguia se desprender completamente. Mesmo quando percebeu que Hector, ainda sumisse por dias, não atendesse o telefone e não avisasse qualquer tipo de coisa para eles, invariavelmente ia aparecer exausto na própria cama, como se nunca tivesse saído de lá, e tendo entrado no apartamento sem que os outros dois percebessem, Daniel não conseguiu deixar de se preocupar por completo. Depois desses sumiços Hector simplesmente se juntaria aos outros, que provavelmente estariam estudando na mesa da sala, em silêncio completo, e acenderia um cigarro, com um sorriso numa metade da boca e a outra com um traço reto dos mais blasés. Daniel deixou de preguntar o que Hector andara fazendo quando percebeu que nunca receberia uma resposta, e passou a tentar esperar que o primo – pois eram primos – viesse a contar suas aventuras de bom grado. Isso também nunca aconteceu, é claro.

Hector estava no seu segundo ano de cursinho. Tentara direito, psicologia e não fazia ideia do que tentaria agora. Não se importava, só continuava prestando o vestibular para que seus pais continuassem a sustentá-lo em São Paulo, não queria sequer pensar em voltar para sua cidade natal, e muito menos em ter de trabalhar para pagar pelos próprios hábitos. Quando Daniel não conseguira entrar no curso de engenharia que tentara no ano anterior, os pais dos dois acharam que seria uma boa ideia que fossem morar juntos. Se Hector não gostou da ideia também não disse nada contra ela. E como o apartamento ficaria mais em conta dividindo em três, Júlio acabou indo morar com eles. Também estava no segundo ano de cursinho, mas estava tentando medicina, então já estava conformado de até mesmo ter de fazer cursinho por mais algum tempo. Tecnicamente Júlio chegara ao apartamento por ser amigo de Hector, mas Daniel não conseguia ver como isso poderia ser verdade. Pareciam diametralmente diferentes. Tudo que Hector tinha de largado, Júlio tinha de dedicado, ainda que isso fosse simplesmente por culpa da necessidade na qual se encontrava. Tudo que Hector de de blasé, Júlio tinha de louco. Daniel, é claro, não se sentia bem com nenhum dos dois.

O único momento em que os três pareciam um grupo de verdade era quando cada um empunhava um instrumento musical e se colocavam a tocar. A música tem esse poder mágico de unir as pessoas muito mais que qualquer outra forma de arte. Quando estavam ali, no apartamento, Hector se sentava ao piano, que havia pertencido à avó que compartilhava com Daniel, como se estivesse interpretando um músico de honk-tonk saído direto de algum filme dos anos 40 e os outros dois pegavam cada qual um violão. Não raro improvisavam. Eram muito bons em fazer isso juntos. Outras vezes compunham; Hector era especialmente bom nisso. E ainda, mais raramente, tocavam alguma música dos Beatles, banda pela qual Júlio era tão fanático quanto qualquer menina da década de 60 trajando suas características meias três-quartos. Sobre a cama de Júlio havia uma foto do grupo tocando no Nippon Bodukan, e no criado mudo ao lado da cama, uma pequena foto de George Harrison que beijava todas as noites antes de ir dormir, como se fosse a imagem de um santo. Uma vez por mês iam em um estúdio. Lá Hector ficava com o baixo, ainda que não completamente satisfeito com isso, Júlio com a guitarra e Daniel com a bateria. Vez ou outra Hector conseguia se safar e tocar num piano, teclado, uma segunda guitarra ou alguma outra coisa que estivesse disponível. Seu talento real era no piano, improvisava muito bem nele, com uma pitada do jazz que tanto gostava. Daniel não entedia muito de jazz, mas sempre lembrava de Thelonious quando Hector tocava, por algum motivo misterioso. Daniel gostava da bateria por um fator muito simples: ali ele tinha em quem bater, podia direcionar sua raiva e seus hormônios para algum fim mais ou menos útil. Júlio sempre lembrava da bateria dos Sonics quando ouvia Daniel tocando. Mas não era só para liberar a frustração de um rapaz de dezessete anos que passava metade de seu dia preso numa sala de aula cujo ensino era direcionado para a área de exatas – e composta por ao menos 90% de outros rapazes como ele, embora talvez um pouco mais feios, em geral – que Daniel sentava no banco da bateria. Ele realmente gostava do instrumento, e gostava dele com violência. Júlio, como a fotografia de Harrison deixava bem clara, não tinha muito para onde fugir de sua guitarra. Surpreendentemente, no entanto, ao tocar ele não lembrava os outros dois companheiros de George, pelo menos não na sua fase Beatle, os solos eram muito longos, os riffs eram completamente viajados. Era fácil de perceber que ao tocar Júlio entrava numa espécie de transe. Sua guitarra, uma fender cherry red, estava completamente destruída de tão usada, quando Daniel a ouvia só conseguia pensar em anjos e na festa do céu, Hector lembrava do diabo, de Robert Johnson e Paganini. Não tinham pretensões, tocavam para se divertir (Júlio), para aliviar o stress (Daniel), ou simplesmente porque tinham de colocar aquela música para fora (Hector). Essas eram situações mágicas para todos eles. E, como tal, não eram frequentes, pareciam ser guardadas para momentos propícios. O que definia o quão propício era o momento era simplesmente o destino.

A verdade é que a maior parte do tempo Júlio e Daniel passavam estudando na mesa da sala. Hector ficava zanzando pelo apartamento, fazia comida, dormia, lia Nietzsche, fumava, deitava no chão, e se entediava até não conseguir mais aguentar e sumir por algum tempo. A maior parte das vezes simplesmente passava uma noite fora, uma noite e um dia, duas noites e o dia no meio, vez ou outra, no entanto, sumia por três dias e os outros inventavam desculpas, caso alguém da família ligasse atrás dele. Não era difícil. Mais difícil seria explicar o motivo de Hector nunca atender o telefone celular, mas por algum motivo essa questão nunca vinha à tona. Daniel pensava que o primo poderia atender nesses casos. Mas a chance disso realmente acontecer era mínima. Era já final de maio quando Hector passou quatro dias fora. Por um lado isso não era nada demais, era de se esperar que alguém que passava três dias fora muito bem pudesse passar quatro. Mas essa quebra de padrão deixou Daniel preocupado. Júlio tentou acalmá-lo. Caso algo ruim tivesse ocorrido, eles já estariam sabendo disso. Não é foi um grande consolo para Daniel, mas ele tentou se conformar que era fim de semestre, nada mais natural do que Hector estar mais estressado que o normal e decidir prolongar suas aventuras noturnas (pois Daniel certamente pensava que essas aventurar eram principalmente noturnas) do que o usual. Não foi, no entanto, esse o caso. Dessa vez, quando Hector chegou em casa, ele não foi sorrateiro como um ninja, mas sim parecia querer chamar a atenção dos dois amigos. Os olhos arregalados não combinavam com a expressão blasé que tinham se acostumado a ver no rosto dele, ainda que o cigarro estivesse ali na boca, imutável. A camisa ensanguentada, no entanto, foi o que deixou Daniel à beira do desespero; perguntou imediatamente se o primo estava machucado, se precisava de ajuda. Depois de um segundo para pensar, Hector respondeu que não, não estava machucado, mas precisava de ajuda; tinha matado alguém e agora precisava se livrar do corpo. Júlio e Daniel, como bons amigos, é claro, imediatamente responderam que sim, que ajudariam.

***

The word under her name was "wed"
And the ring on her finger was a raven
Promising me "nevermore".

I changed my clothes
And all of my passwords
And all of my habits
But I could not save myself
From the greatest of vices: You.

Too real to bear
Were the parts of you I kept,
the ones you hide and leave to die
And when I go, they go with me
The real you, it goes with me.

The light in your eyes will gaze
At all the things that could have been
But were just too real to exist

And, "nevermore", will say your lips.

***

Não sei o que fazer. Nunca soube e nunca vou saber. Se agi errado, a culpa é minha. E não, não existe como não me sentir culpado. É que a vontade de escrever alguma coisa confessional sempre aparece em alguém que tem uma vida tão vazia quanto a minha. Deve ser exatamente por isso, nada lá fora parece fazer parte da vida, então você precisa preenchê-la, nem que seja com textos idiotas, e com um número de filmes grandes demais para um dia com apenas vinte e quatro horas. É uma forma de ao mesmo tempo encontrar um sentido e uma ocupação. Eu não tenho nada na vida, por isso procuro a arte, é ela que supre as lacunas. E é por isso que procuro por ela quando preciso de algum analgésico. É como o álcool, de diversas formas. Uma delas é que o escrever é uma forma de esquecer. Quando as coisas estão ali, postas no papel, é mais fácil pensar que está tudo terminado. “Closure”, não é essa a palavra? E também é por isso que é um inferno ter uma boa memória. Como por um ponto final pode ser possível se se lembra a cada cinco minutos? E como agir então quanto te vejo? Me convenço que sou adulto e que sei lidar com tudo. E é verdade. Mas o menino que escreve lembra, e lembra com o único objetivo de esquecer. O menino que escreve não sou eu, não se preocupe. Mas isso não muda nada, no fim das contas, não é mesmo? Será que é possível mudar? Sei que aprendemos coisas, que a experiência devia nos tornar diferentes, mas não tenho tanta certeza. Cada vez mais duvido da capacidade que qualquer coisa possa ter de mudar. Não, não digo isso só porque não mudou o que sinto. Digo isso porque olho para o mundo e parece tudo triste, e parece tudo vazio, e parece que é necessário achar alguma coisa que ponha um pouco de sentido na vida. No meu caso foi a arte, foi a escrita. Mas paro para olhar e isso é tão vazio, imagino se os outros, aqueles que escolhem a política, o trabalho, a família ou mesmo o amor sentem o mesmo. A vontade de mudar, a raiva, só faz parte da imutabilidade. E como poderia alguém assim parecer interessante? É só mais um no meio de milhares tão inúteis quanto. E o menino que escreve é tão inútil quanto eu. Talvez ainda mais. Mas não acredite nele, é tudo maquiagem, é tudo drama. O menino que escreve não sabe fazer as coisas de forma que elas pareçam o que são, ele só sabe fazer com que elas pareçam dramáticas. Mas o menino tem que escrever, se o menino não escreve eu não esqueço. E se o menino escreve, bem, ainda assim eu não esqueço, mas consigo me anestesiar por um tempo. E é só tempo no fim das contas, não é?

***

You know you're my queen of hearts
And I come back and see you soon.”

***

“The dreams we have as children fade away”.


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