domingo, 23 de outubro de 2011

Inconveniências.

Meu único consolo é que, como dizem os Kings of Convenience, There’s a little bit of you in everyone.

***

I write your name a thousand times

And erase each of them.

I wish it was this simple

to deal with my feelings

to deal with you.

But the truth is -

and you know it -

I’m just no good at

dealing with anything at all.

***

Eu não vou saber o que é isso -se é ou não amor-, a não ser que você me diga.

***

SETUDEN-A4_2J. trabalhava no turno noturno da loja de conveniências. A loja era como aquelas que se encontram em alguns postos de gasolina, pequena mas com uma grande variedade de produtos: revistas, alimentos, pilhas, artigos de higiene pessoal, guarda-chuvas, e coisas do tipo. Durante o dia o lugar até que era bastante movimentado, com muitas pessoas entrando, saindo e comprando; mas já no começo da noite – assim que acabavam os pães que eram trazidos duas vezes ao dia por um padeiro associado – o número de clientes caia a olhos vistos. Era mais ou menos nessa hora que começava o horário de J. – quando ninguém mais tinha interesse na loja –. Provavelmente alguém que cobrasse um salário maior faria com que passar a madrugada abertos não valesse a pena, mas o anúncio dizia “24h” em letras chamativas.

A verdade é que existiam alguns clientes fixos que iam até a loja naquele horário, mas eram muito raras as vezes que alguém completamente desconhecido aparecia ali; quando esse tipo de coisa acontecia, J. já imaginava que o fazia por alguma emergência e quando não parecia ser esse o caso ficava um pouco desconfiado. Era uma pessoa de sorte, outras lojas da vizinhança já tinham tido problemas nos seus horários noturnos, mas nada demais havia acontecido desde que trabalhava naquela loja.

Todos os dias, quando J. chegava, os pães já haviam acabado, e costumava sair assim que chegava a leva matinal, deixando o árduo trabalho de vendê-los para os dispostos funcionários que tinham de acordar por volta das 4 da manhã exatamente para fazê-lo. Ou seja, parava de trabalhar ainda antes do Sol nascer. Quando parava para pensar, a verdade é que via o Sol poucas horas por dia, em geral pelas frestas das janelas de casa, principalmente ao entardecer, antes de sair de casa, mas também algumas vezes durante o dia alto, quando não conseguia dormir, seja pelo calor ou pela necessidade de fazer alguma coisa. Na maior parte do tempo acordado, ficava na loja, e na maior parte do tempo que estava lá, ficava sozinho, mas não se sentia solitário, tinha o lugar só para si, e tinha também a quietude do fim da noite e do começo do dia.

Por favor, não se precipite a julgá-lo como antissocial ou algo do gênero, que tipo de pessoa – de persona – seria ele se fosse assim tão raso? Mas ele merece ser observado um pouco antes que suposições sejam feitas. Vamos observar um pouco uma noite de trabalho dele para tentar entender melhor.

Ele esperou algum tempo depois de ser deixado completamente sozinho na loja, com a saída dos seus antecessores, para se sentir realmente à vontade. Abriu a mochila que sempre trazia para o trabalho e na qual tinha grande parte das coisas que precisaria para passar a noite de trabalho. Vestiu uma camisa xadrez sobre a camiseta que tecnicamente tinha que usar enquanto trabalhava, alguns CDs e um livro, Moby Dick. Recentemente tinha redescoberto os discos de David Bowie, mudando de opinião sobre vários deles, deixara de gostar de Ziggy Stardust – embora ainda gostasse dessa música, não gostava mais do disco, que antes fora um dos seus favoritos – e gostava ainda mais de Space Oddity e Hunky Dory, e um pouquinho mais de Diamond Dogs. Mesmo os últimos discos estavam sendo ouvidos de uma forma diferente. Mas a maior descoberta dos vários dias nos quais passara ouvindo a discografia do  barítono fora sem dúvida Aladdin Sane. Foi pego de surpresa pela grande presença de piano no disco, e pelos jogos de palavra, presentes até mesmo no título, mas que só percebera ao ouvir o nome do personagem ser pronunciado na música como Aladd Insane. Pressentia que iria escutar o disco várias vezes enquanto se perdia no mar com o capitão Ahab.

O primeiro a passar ali naquela noite foi o homem de terno. Ele vinha ao menos uma vez por semana, sempre em um terno, preto ou em outra cor escura genérica, sempre cansado, com algumas olheiras e traços sérios. J. algumas vezes imaginava que o homem trabalhava com uma funerária ou alguma coisa parecida, mas a verdade é que cogitava isso apenas para deixar a imaginação fluir, que aquele era um homem que tinha que lidar com pessoas no momento em que elas estão mais vulneráveis – quando estão mortas – e com as pessoas quando estão no seu momento mais racional  - quando alguém que amam morre –, mas a verdade é que por mais que imaginasse, tinha certeza que não era disso que se tratava, o rosto era sério demais, não demonstrava a sensibilidade de alguém que tem que lidar com a Morte, ao menos não dessa forma. Deveria ser simplesmente alguém que se atulhava de trabalho algumas vezes por noite dentro de um escritório, um advogado talvez, e não tinha para quem voltar quando ia para casa. O homem de terno sempre comprava alguma coisa que pudesse preparar fácil para comer quando chegasse em casa, e sempre mantinha uma distância fria para com J., por mais que se encontrassem com frequência, nunca falava nada além do essencial para a compra. J. não estava certo que aquilo era realmente frieza, por mais que desconfiasse que fosse, não deixava de lado a possibilidade de ser um agente funerário, que evitava proximidade com qualquer pessoa, para que no caso de alguma morte não se visse empurrado para a dolorosa racionalidade do luto. Escolheu algum tipo aleatório de lamen e se aproximou do caixa, só então J. deixou o livro de lado por alguns instantes (por mais que tivesse espiado por sobre o livro, não deixara de lê-lo) para atender o cliente, que manteve sua distância e saiu olhando para J. apenas quando tal era inevitável. J. ficou pensando se nas outras noites o homem comprava comida em outros lugares, para não ter que criar algum tipo de relação através da rotina.

Já estava ouvindo Aladdin Sane pela terceira vez quando a suicida apareceu. Ela parecia ter acabado de sair do Breakfast Club, aquele filme dos anos 80, vestida em uma jaqueta preta e com o cabelo, também preto cobrindo os olhos. A fração do rosto que ficava à mostra não dizia nada. Se o homem de terno era distante, essa era uma esfinge, mas a verdade é que sobre ela tinha mais certezas do que suposições. Ela sempre levava ataduras, band-aids e afins. Algumas vezes também aspirinas, remédios para dores de cabeça ou estomago, alguns analgésicos suaves. Ele tinha certeza que por baixo daquela jaqueta os braços levavam alguns cortes. Nunca dizia nada, quando queria algum remédio apontava-o na vitrine ou na receita que trazia. Não era difícil para J. entender. Ela não vinha com tanta frequência quanto o homem de terno, e isso era uma coisa que de certa forma aliviava J., por mais que fosse difícil falar em algum tipo de relação com ela, seu sentimento de humanidade fazia com que se preocupasse. Seja lá o que acontecesse, desde que fosse de escolha dela, estaria certo, não seria realmente ruim, não deveria ser algo que ele quisesse que não acontecesse, era completamente a favor que as pessoas tivessem total liberdade para fazer o que quisessem com suas vidas, até mesmo por um fim a elas, mas ainda assim uma pontinha de si esperava que tudo ficasse bem. Quando ela se aproximou do balcão, parou e pareceu olhar para o alto, para o nada, reconhecendo a música. Apesar do rosto continuar em grande parte inexpressivo, J. se arriscou a pensar que viu nas feições algum tipo de emoção, talvez até mesmo comoção. E com ela olhando para cima teve um vislumbre rápido do rosto, parecia bonita, mas não que não já o fosse com o cabelo sobre os olhos, mas os olhos são uma parte importante quando se quer entender as coisas que se passam dentro de alguém, para entender a reação de alguém a uma música, por exemplo. Quando ela saiu da loja ele continuou torcendo par que ela voltasse dali a alguns dias, sã e salva.

Passou o resto da madrugada lendo sobre o amargurado homem-do-mar e a baleia branca. Quando o dia começou a se aproximar, desligou o rádio, tirou a camisa, colocou tudo de volta na mochila e esperou os pães chegarem.

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