Não vou deixar você fazer o serviço sujo sozinho, meu caro.
--------- 1) À cova: parágrafos cansativos inconclusos
Serenava. O frio da noite embebia cada poro do seu corpo - a madrugada lhe embriagava aos poucos. Os pés descalços seguiam sem pressa pela rua silenciosa. Andava hesitante - os passos sem rumo são suaves, mas ecoam como quedas. Levava os braços abertos pra sentir melhor a solidão.
Tudo nele me incomodava. Acompanhara-o desde quando o vi de relance, através da janela do bar. Aquele homem triste, tão irritantemente triste, calou todo o burburinho ao meu redor. Eu só tinha ouvidos para o silêncio daquele desconhecido.
Era um silêncio constrangedor, como se estivéssemos a sós numa sala de espera. Alguém precisava dizer algo. Ele não me via, ele sequer tirava os olhos do chão, mas eu sabia que estávamos os dois sozinhos, sozinhos esperando, e isso bastava.
Ele já passara pela janela do bar, passara por mim, estava prestes a entrar em outra rua, estava há um passo de sumir da minha visão, quando então parou. Eu já me preparava para sair daquela loucura, para me acomodar aos meus amigos e copos, para esquecer aquele estranho, reduzi-lo a um bêbado qualquer perdido na madrugada. Mas ele parou, parou como um poste. Ergueu os braços como um vencedor, um vencedor prestes a ser nocauteado. Finalmente mergulhou no chão, mergulhou com vontade, mergulhou como se quisesse se dissolver no asfalto.
Foi patético, admiravelmente patético. Aquele homem era um herói desespererado. Tentava salvar-se da humanidade, salvar a humanidade que restava em si.
Deve ter conseguido, no máximo, um corte na testa.
------- 2) À cova: o maior número de clichês amarrados com o menor número de linhas
O assassinato foi simples. Eram três da tarde, ele estava desacordado no chão da sala, mergulhado em vômito, cinzas e álcool - o clássico.
"Ele federia menos se estivesse morto", pensou.
Matou.
Desceu as escadas até a cozinha, puxou uma cadeira, sentou-se. Batia os dedos sobre a mesa, buscava uma melodia qualquer que tirasse de sua mente a imagem dos 13 anos de casamento mergulhados em vômito, cinzas e álcool.
Avistou uma barata. Sentiu asco. Sentiu-se íntima. Compreendeu-a.
"Mas isso me soa familiar..."
Cuspiu Kafka. Cuspiu Lispector.
Esmagou a barata com a fruteira e buscou o sentido da vida no teto.
Concluiu que exista tanto quanto o armário da cozinha, tanto quanto os pratos dentro do armário da cozinha, tanto quanto o pó sobre os pratos dentro do armário da cozinha.
Todos ocupando espaço. Nada fazendo sentido.
Subiu as escadas, sentou-se ao lado do corpo do marido e ligou a televisão.
--------- 1) À cova: parágrafos cansativos inconclusos
Serenava. O frio da noite embebia cada poro do seu corpo - a madrugada lhe embriagava aos poucos. Os pés descalços seguiam sem pressa pela rua silenciosa. Andava hesitante - os passos sem rumo são suaves, mas ecoam como quedas. Levava os braços abertos pra sentir melhor a solidão.
Tudo nele me incomodava. Acompanhara-o desde quando o vi de relance, através da janela do bar. Aquele homem triste, tão irritantemente triste, calou todo o burburinho ao meu redor. Eu só tinha ouvidos para o silêncio daquele desconhecido.
Era um silêncio constrangedor, como se estivéssemos a sós numa sala de espera. Alguém precisava dizer algo. Ele não me via, ele sequer tirava os olhos do chão, mas eu sabia que estávamos os dois sozinhos, sozinhos esperando, e isso bastava.
Ele já passara pela janela do bar, passara por mim, estava prestes a entrar em outra rua, estava há um passo de sumir da minha visão, quando então parou. Eu já me preparava para sair daquela loucura, para me acomodar aos meus amigos e copos, para esquecer aquele estranho, reduzi-lo a um bêbado qualquer perdido na madrugada. Mas ele parou, parou como um poste. Ergueu os braços como um vencedor, um vencedor prestes a ser nocauteado. Finalmente mergulhou no chão, mergulhou com vontade, mergulhou como se quisesse se dissolver no asfalto.
Foi patético, admiravelmente patético. Aquele homem era um herói desespererado. Tentava salvar-se da humanidade, salvar a humanidade que restava em si.
Deve ter conseguido, no máximo, um corte na testa.
------- 2) À cova: o maior número de clichês amarrados com o menor número de linhas
O assassinato foi simples. Eram três da tarde, ele estava desacordado no chão da sala, mergulhado em vômito, cinzas e álcool - o clássico.
"Ele federia menos se estivesse morto", pensou.
Matou.
Desceu as escadas até a cozinha, puxou uma cadeira, sentou-se. Batia os dedos sobre a mesa, buscava uma melodia qualquer que tirasse de sua mente a imagem dos 13 anos de casamento mergulhados em vômito, cinzas e álcool.
Avistou uma barata. Sentiu asco. Sentiu-se íntima. Compreendeu-a.
"Mas isso me soa familiar..."
Cuspiu Kafka. Cuspiu Lispector.
Esmagou a barata com a fruteira e buscou o sentido da vida no teto.
Concluiu que exista tanto quanto o armário da cozinha, tanto quanto os pratos dentro do armário da cozinha, tanto quanto o pó sobre os pratos dentro do armário da cozinha.
Todos ocupando espaço. Nada fazendo sentido.
Subiu as escadas, sentou-se ao lado do corpo do marido e ligou a televisão.
Gostei particularmente dos clichès amarrados (mas pode ser porque eu goste dos clichès em geral mesmo, não sei...), ficou bonito. E me conforta saber que o Manné não está só em sua cruzada.
ResponderExcluir