Os dois estão olhando para o teto, deitados e cobertos numa grande cama. Grande o suficiente para que sequer toquem um ao outro levemente. Nenhum dos dois parece particularmente cansado, e a única iluminação é a dos abajures, um de cada lado da cama. Estão conversando já a bastante tempo, e é como uma conversa qualquer, nem mesmo se olham nos olhos, trivialidades. Podemos apenas imaginar o que aconteceu antes, quando chegamos pegamos apenas o fim de uma da frase:
-... por isso não quero viver por muito tempo. – ele disse, e, sem saber o que falou antes disso não podemos contextualizar a frase muito bem.
- mas hoje em dia isso não quer dizer muito, não importa o quão velho você fique, sempre existirá a possibilidade se ser saudável se você se cuidar, são grandes as chances de se continuar lúcido, principalmente alguém como você, lendo livros, escrevendo e fazendo palavras cruzadas. Até mesmo a aparência não vai ser um problema, quando ficarmos velhos ninguém vai conseguir imaginar qual a nossa idade de verdade. Você vê os velhinhos hoje e consegue sentir como eles são jovens por dentro, logo eles vão conseguir ser jovens por fora também, e tudo isso não vai fazer mais tanta diferença. – esse não era realmente o tipo de coisa que ela costumava falar, mas o fato de apagar o abajur que estava do lado dela da cama deve dizer algo sobre isso.
- não importa o quão bem eu pareça por fora, ou o quão jovem eu tente parecer quando estiver conversando com alguém. Isso não vai mudar o fato que eu já vou ter feito muitos amigos, aproveitado muito tempo com eles, que eu já vou ter enterrado muitas das pessoas que amei, já vou ter sorrido muito com você e que já vou ter aprendido muito, a duras penas, com o mundo. Já vai ter passado o tempo de segurar crianças no colo ou trocar fraldas. Já vai ter passado o tempo de ganhar dinheiro, e vai ter acabado o impulso que podia fazer com que eu o gastasse bem. Já vai ter passado o tempo em que coisas delicadas me maravilhavam e o tempo em que nada me maravilhava, vou ficar encantado com tudo só para não me deixar cair na apatia. A idade vai fazer com que eu precise de remédios antes de te levar para a cama, e vai fazer com que não nos amemos mais por prazer mas simplesmente porque é isso que fazemos a anos. Envelhecer só vai me deixar mais ranzinza ou bobo, vai me fazer ter medo de tomar banho de chuva e dizer para que as pessoas não saiam de casa sem agasalho, afinal elas podem pegar um resfriado. Envelhecer só vai fazer com que todas as vezes que eu olhe para o mundo não me surpreenda, não de uma forma boa pelo menos, simplesmente vou olhar para como as coisas estão e pensar em como elas eram melhores quando eu era jovem. A velhice só vai me dar tempo para pensar, e você sabe como eu detesto pensar nas coisas, tudo parece tão mais sombrio quando pensamos nisso. – então ele ouviu o leve ressoar dela. Tinha adormecido. Apagou também o seu abajur e a abraçou. Não pode deixar de pensar em como estava ficando velho.
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Sabe, se tem uma coisa que eu realmente gosto nos filmes do Tarantino são os diálogos. Quando gosto de filmes, séries ou mesmo livros, geralmente gosto por causa da estória que eles contam, sem uma estória interessante perdem quase que toda a graça para mim. Tudo o mais é sacrificável em prol de uma boa estória: efeitos especiais, humor, romance e até mesmo profundidade filosófica. Se você tem uma estória boa, me ganha facinho. Mas dizem que toda a regra tem exceção não é mesmo? A minha deve ser Tarantino. Sejamos sinceros, as estórias dele não são lá as mais elaboradas, ou as mais interessantes, por mais que sangue, drogas e sexo em geral facilitem bastante o trabalho. Esse provavelmente deve ser meu problema com Kubrick, metade dos diretores europeus e a quase totalidade dos diretores americanos. Mas, voltando ao ponto, Tarantino me ganha nos diálogos, e geralmente aqueles logo no começo do filme: as conversas estranhamente cativantes no começo de Reservoir Dogs ou Pulp Fiction tanto quanto aquela primeira cena dos Bastardos Inglórios, todos esses diálogos são geniais, e se é verdade que os filmes não se compõem apenas de momentos como esses é mais para não deixá-los na mesmice que por falta de capacidade. Se você prestar bem atenção vai ver que os filmes dele são, como um todo, uma grande conversa com nós que assistimos e nos divertimos. Por isso Kill Bill é o filme que acho mais sem-graça. Ele traz o melhor do diretor, exceto seus diálogos. O visual é interessante, tem bastante galhofa e bastante apelação, como qualquer filme-Tarantino, mas onde está a essência? Onde está o Mr. White para contextualizar o presente com o histórico de um monte de personagens dos quais nem mesmo sabemos os nomes? Onde está Vincent Vega para falar sobre hambúrgueres?
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E foi só um “oi!”, será que posso mesmo chamar isso de conversa?
Alguém tinha que ressuscitar o blog! Thanks Manu.
ResponderExcluirMeu muito bom o texto.
Quanto ao Tarantino, dos filmes que já assisti dele, minha ordem de preferência é: Pulp Fiction, Reservoir Dogs e Bastardos Inglórios.
um abraço,
Thales
O pior filme (mas que está longe de ser ruim) que eu já vi do Tarantino foi "Jackie Brown", e curiosamente parece ser uma unanimidade. E mais curiosamente ainda: "Jackie Brown" é o filme dele com enredo mais bem-estruturado.
ResponderExcluirÉ adaptado de um livro (?) e preocupa-se em contar uma boa história - e é aí que o cara peca.
PS: Kill Bill 2 tem um diálogo sensacional com (spoiler!) Bill no finalzinho.