
Esses dias andava eu, displicentemente no banco de trás do carro - lugar dos que não querem nada da vida -, quando vi anunciando numa placa chamativa em frente ao que agora creio que fosse uma loja de cosméticos: “Temos RAÇÃO HUMANA!” (com o devido destaque). A princípio achei engraçado, cada coisa que inventam, deviam demitir já o responsável, tem uma ideia pra cada doido no mundo. O problema foi a proliferação da expressão: aquele fenômeno que só acontece quando você nunca ouviu falar de algo curioso e basta ver a primeira vez para encontrar em todo lugar. E o pior, logo depois você se dá conta de que o problema era com você: assombrosamente todos já tinham ouvido falar disso. Foi só quando eu vi estampado em uma dessas revistas de quinta categoria, que por acaso estava ao meu lado em um momento de ócio, que veio curiosidade e disposição suficientes pra me familiarizar com o assunto.
A tal ração humana consiste no resultado da mistureba no liquidificador de delícias como trigo, linhaça, aveia e gergelim: deve-se restringir o café-da-manhã (e o jantar, para uma ação mais efetiva, afinal quem está na chuva é para se molhar) a jogar goela abaixo a diluição de duas colheres de sopa do preparado com leite. Desnatado, claro. A promessa é “secar até 8 quilos em um mês”. Logo se nota que é uma dieta mirabolante não diferente de muitas outras, vindo à memória ecos daquelas propagandas da Polishop nas altas madrugadas. Contudo, a impressão que me deu foi que esta prática vem sendo mais levada a sério que o normal e está se tornando cada vez mais popular. E a grande diferença, peculiaridade que me chamou a atenção desde o início, é que o nome vai direto ao ponto.
Sem enrolações, sem cortinas de fumaça, tucanagens ou eufemismos. É a ração humana. A animalização daqueles que se submetem a insanas torturas estéticas é, finalmente, oficial. Não há esforço do marketing, talvez pela primeira vez na história das vendas baratas, para atrair o consumidor com devaneios de que a compra a ser realizada é especial, fina: aquilo não passa de ração. Talvez seja mera humilhação sádica dos vendedores. Já que o que não falta são clientes para produtos de magreza, vamos fazê-los rastejar por eles. Pensando bem, provavelmente não é isso, já que capitalistas são bonzin... Já que capitalistas querem o máximo de público. Bom, deve ser só um nome de produto facilmente memorizável.
E como é notável! Extasiemo-nos! É o auge da honestidade corporativista! Quem segue dieta sujeita-se a sacrificar o próprio paladar para emagrecer. E se é assim, por que se enganar rotulando a alimentação industrialmente balanceada de qualquer outra coisa que não ração? Afinal, você permite que outros decidam o que é bom para você (é a felicidade fabricada) - assim como o ser humano faz com seu cachorro. Ó, plebeu, entenda: quando você diz estar acompanhando a dieta com o Max Emagreceitor Bündchen 2000, sabemos que no fundo você quer usar aquelas cinco letrinhas. Entendemos, e lamentamos. Palmas para os inventores: além de sinceridade, trouxeram aceitação para os pobres coitados que correm atrás para ser o modelo ideal de pessoa.
Tudo, claro, é proveniente daqueles velhos parâmetros da sociedade a que todos supostamente devemos nos adequar. Alguém ao seu lado, de cima, de fora dizendo: você deve ser assim (até que a voz começa a vir de dentro). Não quero descambar para o lado clichê de mostrar a óbvia e patética preocupação da sociedade com a imagem, mas não deixa de impressionar o quanto as pessoas decidem sacrificar do próprio agrado para dedicarem-se a serem agradáveis para os outros. A auto-estima ferida funciona como um ralo, e drena cada vez mais de um corpo e mente perfeitamente normais, quando a pessoa decide impor-se penitências e, julgando-se indigna, exterminar luxos que traziam deleite. O prazer da refeição é ignorado em prol dos objetivos puramente biológicos: se seu corpo obtém todas as vitaminas necessárias e todos os nutrientes recomendados, você deveria estar satisfeito. Não critico que as pessoas procurem ser mais saudáveis, contudo questiono quanto do carpe diem elas estão dispostas a defenestrar nessa viagem.
Nos filmes e livros futuristas, desde os mais pessimistas até as historinhas do Astronauta do Mauricio de Sousa, é frequente a preocupação em retratar a substituição da comida por produtos sintéticos. O paladar é desprezível por fugir do racional. De fato, se for esse o prisma considerado, acabamos de dar mais um passo em direção a esse admirável mundo novo.
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