sexta-feira, 30 de julho de 2010

A ambrosia do século vinte e um

Eu, a exemplo de alguns outros colegas recém-blogueiros, também divaguei um pouco sobre o conteúdo das minhas postagens por aqui. Pensei em escrever sobre política, mas a MH me lavou o cérebro de tal modo que quando falo de política, me sinto trabalhando e, convenhamos, estou de férias. Pensei em abordar temas polêmicos (olha eu, separando política de polêmica!), mas o que quer que dissesse seria ofuscado pelos textos melhor articulados dos meus colegas. Então quem sabe fosse escrever contos ou poesias, mas lembrei que me falta a criatividade ficcional e a coerência estética. Decidi por fim escrever sobre o que me vier à cabeça, e desde já peço perdão por isso. Minha cabeça é imprevisível, inconstante, revoltosa, anárquica (como o sistema de Estados - sai MH!!) e por vezes obscena, mas com alguma sorte e muita dedicação, ela pode ser domada para formular bobagens inofensivas como a que vem a seguir.

Esses dias andava eu, displicentemente no banco de trás do carro - lugar dos que não querem nada da vida -, quando vi anunciando numa placa chamativa em frente ao que agora creio que fosse uma loja de cosméticos: “Temos RAÇÃO HUMANA!” (com o devido destaque). A princípio achei engraçado, cada coisa que inventam, deviam demitir já o responsável, tem uma ideia pra cada doido no mundo. O problema foi a proliferação da expressão: aquele fenômeno que só acontece quando você nunca ouviu falar de algo curioso e basta ver a primeira vez para encontrar em todo lugar. E o pior, logo depois você se dá conta de que o problema era com você: assombrosamente todos já tinham ouvido falar disso. Foi só quando eu vi estampado em uma dessas revistas de quinta categoria, que por acaso estava ao meu lado em um momento de ócio, que veio curiosidade e disposição suficientes pra me familiarizar com o assunto.

A tal ração humana consiste no resultado da mistureba no liquidificador de delícias como trigo, linhaça, aveia e gergelim: deve-se restringir o café-da-manhã (e o jantar, para uma ação mais efetiva, afinal quem está na chuva é para se molhar) a jogar goela abaixo a diluição de duas colheres de sopa do preparado com leite. Desnatado, claro. A promessa é “secar até 8 quilos em um mês”. Logo se nota que é uma dieta mirabolante não diferente de muitas outras, vindo à memória ecos daquelas propagandas da Polishop nas altas madrugadas. Contudo, a impressão que me deu foi que esta prática vem sendo mais levada a sério que o normal e está se tornando cada vez mais popular. E a grande diferença, peculiaridade que me chamou a atenção desde o início, é que o nome vai direto ao ponto.

Sem enrolações, sem cortinas de fumaça, tucanagens ou eufemismos. É a ração humana. A animalização daqueles que se submetem a insanas torturas estéticas é, finalmente, oficial. Não há esforço do marketing, talvez pela primeira vez na história das vendas baratas, para atrair o consumidor com devaneios de que a compra a ser realizada é especial, fina: aquilo não passa de ração. Talvez seja mera humilhação sádica dos vendedores. Já que o que não falta são clientes para produtos de magreza, vamos fazê-los rastejar por eles. Pensando bem, provavelmente não é isso, já que capitalistas são bonzin... Já que capitalistas querem o máximo de público. Bom, deve ser só um nome de produto facilmente memorizável.

E como é notável! Extasiemo-nos! É o auge da honestidade corporativista! Quem segue dieta sujeita-se a sacrificar o próprio paladar para emagrecer. E se é assim, por que se enganar rotulando a alimentação industrialmente balanceada de qualquer outra coisa que não ração? Afinal, você permite que outros decidam o que é bom para você (é a felicidade fabricada) - assim como o ser humano faz com seu cachorro. Ó, plebeu, entenda: quando você diz estar acompanhando a dieta com o Max Emagreceitor Bündchen 2000, sabemos que no fundo você quer usar aquelas cinco letrinhas. Entendemos, e lamentamos. Palmas para os inventores: além de sinceridade, trouxeram aceitação para os pobres coitados que correm atrás para ser o modelo ideal de pessoa.

Tudo, claro, é proveniente daqueles velhos parâmetros da sociedade a que todos supostamente devemos nos adequar. Alguém ao seu lado, de cima, de fora dizendo: você deve ser assim (até que a voz começa a vir de dentro). Não quero descambar para o lado clichê de mostrar a óbvia e patética preocupação da sociedade com a imagem, mas não deixa de impressionar o quanto as pessoas decidem sacrificar do próprio agrado para dedicarem-se a serem agradáveis para os outros. A auto-estima ferida funciona como um ralo, e drena cada vez mais de um corpo e mente perfeitamente normais, quando a pessoa decide impor-se penitências e, julgando-se indigna, exterminar luxos que traziam deleite. O prazer da refeição é ignorado em prol dos objetivos puramente biológicos: se seu corpo obtém todas as vitaminas necessárias e todos os nutrientes recomendados, você deveria estar satisfeito. Não critico que as pessoas procurem ser mais saudáveis, contudo questiono quanto do carpe diem elas estão dispostas a defenestrar nessa viagem.

Nos filmes e livros futuristas, desde os mais pessimistas até as historinhas do Astronauta do Mauricio de Sousa, é frequente a preocupação em retratar a substituição da comida por produtos sintéticos. O paladar é desprezível por fugir do racional. De fato, se for esse o prisma considerado, acabamos de dar mais um passo em direção a esse admirável mundo novo.

9 comentários:

  1. Olá Walter! Achei bem legal o texto, principalmente pela fluidez e pelos pontos de humor. Ah, gostei também da imagem, foi bem auto-explicativa. Até mais!

    ResponderExcluir
  2. shuhasuuhasuhsahuas

    pois é, pelo menos não podemos acusar o nome de propaganda enganosa.
    já tinha ouvido falar nessa tal de ração, meu pai (que é bem ligado nessas coisas naturais, farelos e comidas de passarinho em geral) já até tinha comprado em casa e o nome realmente tinha chamado a atenção..

    Lindo texto. Parabéns

    ResponderExcluir
  3. Não existe animal mais domesticável que o homem.

    Tem um texto do Dráuzio Varella mais ou menos nessa linha, não sei se você conhece. É genial:
    "No mundo atual está se investindo cinco vezes mais em remédios para virilidade masculina e silicone para mulheres do que na cura do mal de Alzheimer. Daqui a alguns anos, teremos velhas de seios grandes e velhos de pau duro, mas eles não se lembrarão para que servem."

    ResponderExcluir
  4. Admito, já provei da ração humana, rsrs. Num passado não tão distante em que eu dançava ballet e precisava manter a forma sem perder a "força vital". De fato, a experimentação foi motivada por uma relação objetiva com a comida, assim como outras mais. Gelatina para o tônus muscular, banana para cãibra. O sabor viria apenas como o estímulo derradeiro. Pelo menos, a principal causa disso tudo, a dança, não incorre na insensibilidade de outro hábito da sociedade contemporânea: separar a atividade física do prazer e de sua beleza ao praticar aqueles exercícios pontuais nas academias de musculação. Não sei se vamos todos nos tornar animalizados com essa mania de otimização, mas acho que mais misticismo no nosso cotidiano não faria nenhum mal.

    ResponderExcluir
  5. A primeira vez que li "ração humana" me lembrei do Hannibal Lecter...

    "...não deixa de impressionar o quanto as pessoas decidem sacrificar do próprio agrado para dedicarem-se a serem agradáveis para os outros."

    acho que as pessoas devem considerar que se elas forem agradáveis para os outros, vão obter prazeres para si mesmas. Não consigo acreditar em altruismo puro.

    adorei o texto!

    ResponderExcluir
  6. Valeu mesmo pelo apoio, gente, é um alívio e um incentivo =)

    Fernanda, eu não conheço esse texto do Varella, mas pelo trecho parece bem sensato e exatamente de acordo com o que eu penso - mais genial ainda foi sua frase inicial...

    E Lucas (Claus!), é a questão da auto-estima: agradando os outros a pressão sobre os seus ombrinhos quando você andar na rua vai ser menor. Nada de altruísmo =)

    Abraços!

    ResponderExcluir
  7. Walter, parabéns!!!

    Andei meio afastado do blog, e ainda não tinha lido um texto seu. Gostei pra caramba, do estilo e do conteúdo. Aqui em casa às vezes aparece essa tal de ração humana, mas eu desconhecia essa finalidade 'emagreceitor' dela. Era mais um complemento, uma coisa natural que se come para ficar mais saudável... quem produz isso na minha região são os Hare-Krishnas, e é sobretudo para complementar dietas vegetarianas. Hehe, pelo menos era! Agora a sanha do tanquinho pode já ter mudado isso :P

    Grande abraço!

    Bons ventos,

    ResponderExcluir
  8. HAUHAUHAUA
    Mandou bem Waltinho!
    Eu sou a favor de ração humana, pena que nunca vi para comprar!

    ResponderExcluir
  9. Essa foi a melhor de suas gradações:
    "Alguém ao seu lado, de cima, de fora dizendo: você deve ser assim (até que a voz começa a vir de dentro)."
    Adorei o texto, Tequinho!
    (e eu já provei da ração humana, o nome imbecil pra o monte de fibra que na verdade falta na comida industrializada e gordurosa que a gente engole no dia-a-dia)

    ResponderExcluir