“Dissipar a ilusão significa tirar o sentido do drama inteiro. O que prende os olhares dos espectadores é justamente a ficção, o truque. Toda vida humana nada mais é do que um espetáculo em que, um com uma máscara, outro com outra, cada qual recita seu papel para, a um sinal do chefe do coro, sair de cena”
Erasmo de Roterdã
O processo de identificação de estruturas como razões fundamentais para o comportamento humano, muitas vezes sintetizado na visão determinística, estritamente associada ao conceito do ambiente como modelador indiscutível da personalidade humana, ganhou destaque no pensamento sociológico especialmente no fim do século XIX e no decorrer de seu subseqüente. O pensar e o agir do ser humano, muito mais do que manifestações de um suposto livre-arbítrio, estariam de tal forma associadas a contextos externos a eles que mesmo a idéia de liberdade seria constantemente colocada à prova: Até que ponto somos livres? Fazemos nossas próprias escolhas ou apenas confirmamos modelos pré-determinados de acordo com os contextos em que estamos incluídos – quem sabe inevitavelmente submersos?
É certo que a análise histórico-psicológica não nega a influência do meio como fator fundamental na tomada de decisão por parte de diferentes grupos: a paranóia anticomunista materializada no McCartismo, o qual mobilizou a população americana em uma cruzada de perseguição implacável à “ameaça” marxista, exemplifica o quanto a bipolarização político-ideológica do período de Guerra Fria foi capaz de criar um ambiente de pressão psicológica coletiva, onde vizinhos, parentes ou quaisquer outros indivíduos que se mostravam propensos à subversão eram denunciados, investigados e mesmo até compelidos ao suicídio – tudo isso na “terra da liberdade”. Contudo, o pensar deterministicamente, muito mais do que um instrumento para a compreensão pontual de eventos históricos, é constantemente utilizado como esteio fundamental de todo o conjunto de ações perpetradas pelo ser humano, negando-lhe, de certa forma, responsabilidade sobre elas: apóia-se no argumento supostamente absoluto de que o indivíduo foi influenciado por contingências irresistíveis do meio ao qual ele provém ou está inserido, esquecendo-se do quanto temos vontades, medos, ambições, em suma, que somos humanos, movidos por anseios, interesses, paixões próprias. Culpar o meio, seus componentes e características, não é só resultado da vontade de se eximir da culpa, mas também um confortável apoio sob o qual repousamos, por vezes, nossa consciência, certos de encontrar ali consolo para nossas falhas.
Exemplo importante nesse sentido, nossas relações interpessoais e seus aspectos mais escusos já foram, freqüentemente, envoltos por diferentes véus que procuraram, insistentemente, deslocar o foco da culpa para um suposto “sistema”: os alvos favoritos são as exigências de uma sociedade de consumo, a competição desmedida a qual nos é imposta dia após dia e, finalmente, o capitalismo, bode expiatório de todos os flagelos. Olvidamo-nos da nossa responsabilidade indiscutível na gênese de tais fatores de pressão: somos nós os criadores desse meio, desse ambiente que nos oprime em direção a ações de mérito discutível, e é precisamente por essa razão que ele é tão avassaladoramente forte; são elementos internos, intrinsecamente humanos, e não externos, os quais são conseqüências daqueles, que constituem fundamentalmente nossas escolhas, nosso ser e dever-ser.
A carência de transparência e sinceridade em diversas relações humanas, tão agudamente percebida ao longo dos séculos por um sem-número de filósofos, sociólogos e psicólogos, é um modesto mas esclarecedor viés de tal discussão: é freqüente que indivíduos se relacionem de forma diferenciada com distintas pessoas, na medida em que tal relação afeta, de alguma maneira, seus interesses. Dança-se um luxuoso baile de máscaras, em que os participantes, certos de sua esperteza sem igual, escondem suas verdadeiras personalidades por detrás de disfarces cada vez mais sofisticados, justificando-se como atendendo às contingências, novamente irresistíveis, de um meio esmagador e cruel. Monta-se, desfruta-se de uma ficção, mas não por necessidade, senão por vontade: a ilusão é infinitamente mais sedutora que a realidade. Até que as máscaras imiscuem-se cada vez mais com as faces, fundindo-se a elas, perdendo-se a referência, a diferença entre personalidade e máscara, realidade e disfarce. E então, em meio ao farfalhar das fantasias, aos acordes da incansável orquestra e ao brilhar ofuscante do salão, ergue-se uma voz, consciente, consciência, a perguntar: No que nós nos transformamos?
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