quarta-feira, 16 de junho de 2010

Para além do Bem e do Mal

"Além disso, o inimigo começou a empregar uma nova e terrível bomba, cujo poder de destruição incalculável tem tirado a vida de muitos inocentes. Se continuássemos a lutar, isso não apenas resultaria no colapso final e na obliteração da nação japonesa, mas também levaria à extinção total da civilização humana"
Hirohito


Il Gattopardo, romance ímpar do italiano Tomasi de Lampedusa tem como âmago a trajetória de Dom Fabrizio Corbera, decadente nobre do Risorgimento retratado em sua constante derrocada como aristocrata diante das novas forças da burguesia republicana italiana. Estupefato, ele se agarra desesperadamente a prerrogativas já perdidas, ao mesmo tempo em que o casamento do sobrinho com a filha de um emergente comerciante demonstra que, a despeito dos tradicionalismos, a única maneira de sobreviver é encarar e entender a realidade, para só assim modificá-la em seu benefício. No nobre italiano, discerne-se um notável paralelo com a realidade internacional atual: é indubitável que à era da hegemonia norte-americana segue-se, atualmente, um novo período de multilateralismo, mais e mais evidente na incapacidade americana de lidar com os desafios políticos e econômicos de um mundo que reluta cada vez mais em identificar na bandeira americana uma liderança incontestável no cenário internacional. Prova maior da inépcia e ilusão acerca da liderança da flâmula ianque, a desastrosa política estadunidense com o Irã nega-se a entender a patente verdade e, tal como o nobre siciliano, encontrar vias de trabalhá-la, no caso, a favor da estabilidade geopolítica da conturbada região do Oriente Médio.
É tradicional a manutenção, em diversos níveis acadêmicos, de uma série de preconceitos e visões parciais sobre a realidade em países que fogem à órbita ocidental tradicional, especialmente os de tradição persa e árabe, colocados sob o mesmo rótulo do islamismo. Vamos aos fatos. O Irã, país que tem em sua origem a Pérsia, é um país de cada vez maior relevância no cenário econômico local: de 2004 a 2008 o PIB iraniano cresceu, em média, 3,42%. Dos seus 72 milhões de habitantes (cuja expectativa de vida é 71 anos), 82,3% são alfabetizados. As previsões econômicas, de forma geral, indicam maior dinamismo comercial com os vizinhos, bem como ampliação da influência regional, o que chama a atenção para o aspecto geopolítico iraniano. O país possui fronteiras, a oeste, com o Iraque, invadido por tropas norte-americanas, e a Turquia; a leste, com o Paquistão (detentor de artefatos atômicos), o Afeganistão (outro país sob ocupação americana); e, ainda, encontra-se nas proximidades de Rússia, China e Israel, três Estados que, comprovadamente, são detentores da bomba nuclear. Evidencia-se, assim, a complexa situação geopolítica na qual o país se encontra inserido, cercado por países com grande potencial destrutivo e, alguns deles, dominados pelo maior rival político iraniano, os Estados Unidos. É patente, nesse contexto, a urgência de procurar e desenvolver a tecnologia nuclear como poderoso instrumento de barganha local, sendo condição indispensável para sua desejada emersão como potência regional. Tais elementos são, até certo ponto, inerentes ao fato de o governo ter caráter autoritário e teocrático: mesmo as mais límpidas democracias, a exemplo de Israel, procuraram o refúgio nuclear em contextos semelhantes.
Por outro lado, a análise da situação nuclear iraniana atual demonstra com clareza os avanços já realizados nesse campo: para muitos especialistas, trata-se de uma questão de tempo – relativamente pouco, aliás – para que a nuclearização do país torne-se uma realidade, a despeito dos esforços internacionais. Nesse sentido, vale o comentário da clara ineficiência da nova (e das que porventura vierem) rodada de sanções da Organização das Nações Unidas. Historicamente, o mecanismo de isolamento via restrições econômicas raramente é eficaz, tendo em vista seu alcance limitado, por um lado, pelos interesses comerciais que certas potências, como a China, possuem com o país e, por outro, pela dificuldade da aplicação efetiva de tais medidas em um mundo onde as trocas econômicas adquiriram caráter cada vez mais dinâmico.
O cenário claramente desenhado pelas circunstâncias supracitadas não deixa dúvidas: a união da necessidade, nos conceitos de razão de Estado, para a ascensão do Irã como potência a nível local, com a possibilidade técnica para a produção de artefatos nucleares, elucida que não obstante os esforços internacionais, um Irã atômico é uma mera questão de tempo. Agarrar-se à cartilha wilsoniana da segurança coletiva não só é uma perda preciosa de tempo e de esforços: é também um perigoso instrumento de isolamento de um país que, cedo ou tarde, tornar-se-á detentor de armamentos de desmedido poder destrutivo.
O momento atual seria, dessa forma, muito mais proveitoso se utilizado para abrir canais de comunicação, formas de retirar o Irã do auto-isolamento e colocá-lo na mesa de negociações. A concretização da experiência nuclear iraniana tornará o equilíbrio político do Oriente Médio uma questão ainda mais delicada e predisposta a catástrofes: trabalhar com os novos aspectos desse equilíbrio que surgirá com a emergência dessa nova potência nuclear não é só uma proposta importante, mas a única opção no presente momento e no futuro, caso se queira evitar uma guerra de grandes proporções na região. A ameaça do cataclismo atômico, nesse sentido, suplanta até mesmo as críticas de violações de direitos humanos: há de se conversar para evitar uma tragédia ainda maior. Para além do Bem e do Mal, há uma realidade ali e, tal como Dom Fabrizio no século XIX, resta-nos encará-la, entendê-la para só assim modificá-la.

2 comentários:

  1. Meu orgulho! Escritores se revelando, que coisa linda.
    Ainda comento o seu texto adequadamente quando puder - tô fugindo dessas discussões com viés internacionalista.
    Você podia assinar como Cadu mesmo... Fica mais simpático, cara.

    Abraços!

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  2. discordo, assine como Carlos Eduardo mesmo. u.u

    e estou absolutamente feliz por te ver escrevendo, criança!
    santo orgulho...

    meus parabéns!

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